Para movimentos, as cotas sociais não substituem as étnico-raciais

Negros e indígenas organizados na USP defendem políticas específicas de inclusão social

Para movimentos, as cotas sociais não substituem as étnico-raciais. Foto: Alexandre Gennari / SCS

Debates e palestras são realizados por movimentos para discutir as cotas na Universidade.
Foto: Alexandre Gennari / SCS

Em 2015, a USP atingiu o porcentual máximo de alunos pretos, pardos e indígenas (PPI) nos últimos dez anos em relação aos ingressantes que estudaram o ensino médio em escolas públicas. O número obtido, de 32,1%, é próximo da meta de 35% estabelecida pela Universidade.

Esse porcentual, no entanto, é reduzido para 18,8% se consideramos a proporção de PPI no total de matriculados – foram 2.058 alunos num universo de 10.955. O que significa que, naquele ano, mais de 80% dos novos alunos da USP eram brancos, um quadro criticado por movimentos sociais da Universidade.

Para eles, a representação da sociedade brasileira e paulista não está presente na USP. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são quase 200 milhões de brasileiros. Mais da metade da população, 54%, se autodeclara preta ou parda na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 2014.

O Estado de São Paulo concentra quase um quarto de toda a população brasileira, com quase 43 milhões de pessoas, de acordo com estimativa da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Desse total, 34,6% se autodeclararam pretos ou pardos.

“As universidades paulistas são um dos últimos redutos de resistência da aplicação de políticas e ações afirmativas para populações negras e indígenas no País. Cotas raciais na USP não são uma concessão dessa instituição, nem um favor, estamos cobrando das três instituições de ensino superior público de São Paulo que sejam aplicadas as políticas de reserva de vagas. Não queremos bônus, mas reservas de vagas para a população negra e indígena por todo o histórico de luta e de contribuição que essas populações tiveram e têm na formação e na manutenção do País”, defende a bióloga Maria José Menezes, integrante do Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP.

O NCN, segundo Maria José, tem um histórico de 28 anos de combate à desigualdade racial na Universidade, de ações para a democratização do conhecimento e pela construção de uma sociedade sem preconceitos e sem exclusões. Para isso, ele oferece cursinho pré-vestibular popular, aulas de idiomas, palestras e debates sobre questões de raça e gênero.

Maria José ressalta que não há como alterar o quadro de desigualdade socioeconômica no Brasil sem antes resolver as questões raciais. E uma das ferramentas para isso é pensar em medidas de Estado que combatam as desigualdades raciais em todas as esferas públicas, na saúde, na educação, na moradia etc.

O NCN participa da Frente Pró-Cotas Raciais do Estado de São Paulo, que propôs à Assembleia Legislativa Estadual uma alternativa ao Projeto de Lei 530/2004, sobre o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Paulista (Pimesp).

De acordo com o texto, USP, Unicamp e Unesp devem garantir 55% de cotas, assim divididas: 25% para candidatos autodeclarados negros e indígenas; 25% para candidatos oriundos da rede pública de ensino, sendo que, deste porcentual, 12,5% reservados para estudantes cuja renda familiar per capita seja igual ou inferior a 1,5 salário mínimo; e 5% para candidatos com deficiência, nos termos da legislação em vigor.

“Esse projeto é absolutamente ignorado pelas instituições de ensino estadual, isso é muito grave porque ele tem uma aplicação e uma possibilidade de avançarmos para a implementação de políticas verdadeiras para a inclusão racial dentro dessa estrutura de representatividade da população brasileira”, afirma a integrante do NCN.

Ela lembra ainda que as cotas nas universidades são uma reparação histórica da apropriação por pesquisadores do conhecimento de indígenas e africanos e seus descendentes.

“Essas populações têm e tiveram um papel fundamental na pesquisa e na geração de conhecimento, mas elas não são os sujeitos desse conhecimento porque ele foi expropriado delas, houve uma apropriação de conhecimento e todos nós sabemos que isso aconteceu e acontece até os dias de hoje. E uma forma de resolver esse débito que a ciência tem com essas populações é dar o devido mérito a esses povos, o conhecimento que temos hoje da fauna e da flora brasileira, o conhecimento de vários medicamentos que atuam nas diversas doenças, que foi passado e ensinado pelas populações originárias indígenas e africanas para os pesquisadores”, defende Maria José.

Ocupação Preta

“Vocês podem perceber, se derem uma olhadinha na sala, que existe uma diferença muito grande de cor, classe social e, muitas vezes, de gênero, de pessoas que entram na Universidade de São Paulo.” Esse trecho faz parte da fala de um militante do movimento Ocupação Preta durante intervenção em sala de aula na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, realizada em março de 2015.

O Ocupação Preta iniciou suas atividades em março do ano passado com a proposta de intervir em espaços da USP para debater a questão racial e, principalmente, a necessidade das cotas. Na época, o Conselho Universitário (Co) da USP faria uma reunião para discutir as formas de ingresso no vestibular 2016.

Um grupo de estudantes negros do campus da USP da capital e outro de fora da Universidade decidiram se encontrar e fazer a ocupação em uma aula que estava acontecendo na Escola Politécnica (Poli), para questionar os alunos se eles estavam sabendo sobre o encontro do Co.

“Resolvemos partir para a ação concreta, direta, mostrando para o pessoal que estamos numa luta por cotas étnicas raciais e não somente sociais, porque entendemos a Universidade como um espaço de poder e que exclui quase que totalmente pessoas negras”, explica Marcelo Moreira de Jesus, estudante da Faculdade de Odontologia (FO) e integrante do Ocupação Preta.

O grupo escolhe um dia para interromper uma aula ou um evento na Cidade Universitária e realizar a discussão sobre o tema. Alguns estudantes criticam o modo de atuação do Ocupação Preta, dizendo que são radicais ao restringir o direito de ter aulas.

“Falamos, nas ações de ocupação, que não estamos ali para acabar com a aula deles. Na verdade, estamos propondo uma intervenção política, tirar o pessoal da normalidade. São 20 a 30 minutos da aula, em que fazemos com que reflitam um pouco sobre o racismo institucional que vivemos na USP”, destaca Moreira de Jesus.

As ações do movimento começaram a ter maior repercussão justamente com a intervenção realizada na FEA, mencionada anteriormente. Houve um embate entre o grupo que paralisou a aula para discutir a questão das cotas na USP e os estudantes da FEA que se recusavam a participar do debate. Em vídeo divulgado na internet, um dos alunos diz que quer assistir a sua aula de microeconomia e, sobre as cotas, “é só estudar e entrar na universidade”.

Moreira de Jesus conta que a maioria dos estudantes da Universidade não quer participar do debate sobre a inclusão do negro e defende a atitude de ocupar as salas de aula para fazê-los refletirem sobre o tema.

“Eles fazem questão de não se apropriar desse debate, de não se apropriar do discurso do negro e da negra para se manter naquela condição confortável de estudante uspiano privilegiado. Quando os convidamos para a discussão em forma de mesa, debate, eles não vão. Então, vamos até eles fazer com que reflitam, em primeiro lugar, sobre o privilégio nosso de ser da USP, depois debatemos a questão da ausência do negro e da negra na Universidade”, explica o estudante.

No Facebook, o Ocupação Preta lançou uma campanha questionando o motivo da USP não ter cotas, utilizando a hashtag #‎PorqueaUSPnãotemcotas‬. O movimento acusa a Reitoria da Universidade ‪de ignorar a demanda dos movimentos negros de dentro e de fora da USP.

Invisibilidade

Estudantes indígenas também consideram as ações afirmativas da USP insuficientes para a inclusão deste grupo étnico. Segundo o último Censo Demográfico do IBGE, vivem no estado de São Paulo 41.794 indígenas, o que representa 0,1% da população paulista. Um dos movimentos organizados dentro da Universidade, o Levante Indígena, afirma que é preciso tirar essa pauta da invisibilidade.

Pretos, pardos e indígenas na USP

Porcentual em relação aos ingressantes de escolas públicas

Porcentual em relação aos ingressantes de escolas públicas | Fonte: Pró-Reitoria de Graduação

Segundo o movimento, o sistema de bonificação é ilusório, já que o próprio vestibular da Fuvest é considerado uma barreira para chegar até a Universidade. “O vestibular entra em conflito com a educação própria de cada povo, visto que não são os conhecimentos indígenas que estão ali sendo cobrados, e sim uma imposição acadêmica”, declarou o Levante Indígena em nota enviada ao Jornal da USP Especial.

Outro ponto lembrado pelos integrantes é que as questões das provas envolvem interpretação de textos e, para aqueles cujo português é uma segunda língua, isso representa mais um entrave.

“Esses problemas também se encontram nas vagas pelo Sisu, com o agravante de que estudantes de escola pública, negros, pardos e indígenas estão disputando essa porcentagem. Não existe paridade entre essas quatro categorias”, defendem.

Para o Levante Indígena da USP, é preciso pensar em políticas específicas de inclusão que vão além das cotas, como vestibular específico, centro de apoio, cursinho e ingresso por meio de entrevista.

Curiosidade – Lei do Boi previa cotas em escolas agrícolas

A adoção de cotas em instituições de ensino não é uma novidade. Em 1968, durante o regime militar, o general Costa e Silva sancionou a Lei nº 5.465, que reservava vagas específicas em escolas agrícolas do ensino médio e superior mantidas pelo governo federal.

Chamada de Lei do Boi, ela destinava 50% das vagas para matrícula na primeira série do ensino médio de escolas agrícolas e 50% para matrículas nas escolas superiores de Agricultura e Veterinária. Os beneficiários eram “candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residiam com suas famílias na zona rural”.

As escolas de ensino médio não agrícolas também deveriam reservar parte de suas vagas, 30% delas para o mesmo público, mas com a ressalva de que eles residissem em cidades ou vilas que não possuíssem unidades de ensino desse tipo.

A lei vigorou por 18 anos, até 1985, quando o então presidente José Sarney revogou a Lei do Boi por meio da ­Lei nº 7.423, de 17 de dezembro. Jornais da época denunciaram que a reserva dessas vagas beneficiava apenas filhos de fazendeiros e não pequenos agricultores.

 


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