O desafio de ensinar a cultura brasileira em Kyoto

A experiência de oito professores da Escola de Comunicações e Artes da USP entre estudantes japoneses está registrada no livro “Ponte Cultural”. Sob a organização de Atílio Avancini e fotos de Joel La Laina Sene, a edição traz o relato sensível de ensinar a arte, a língua portuguesa e a história do Brasil. E, ao mesmo tempo, contemplar as cerejeiras e reverenciar a natureza em haicais

 09/01/2017 - Publicado há 7 anos
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20170109_kyoto01Professores da ECA  vivem a travessia de duas culturas – Foto: Joel La Laina Sene
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São histórias, olhares e impressões diferentes de oito professores da Escola de Comunicações e Artes da USP que viveram e trabalharam na mesma cidade de Kyoto. Em um convênio com a Kyoto University of Foreign Studies (KUFS), realizado entre 2006 e 2015, cada um dos docentes lecionou no decorrer de um ano. Uma experiência que resultou no livro Ponte Cultural: Caminho para intensificar intercâmbio com universidades japonesas. E também na produção de fotos, pinturas, haicais, canções, aforismos que foi reunida em exposições, saraus, seminários e publicações.

A edição está sendo lançada como parte das festividades dos 50 anos da ECA e já está à disposição para consulta nas bibliotecas da USP. “Adentrar o espaço das páginas deste livro é como seguir os passos de cada docente pelos caminhos sinuosos do Japão no jogo simultâneo conflito-encantamento entre  Oriente e Ocidente”, observa o organizador, Atílio Avancini, que foi o primeiro professor a participar do convênio. “O que torna esta obra única, portanto, é a dimensão de ponte cultural pelo relato de experiências didático-pedagógicas de cada autor.”

Os primeiros passos de Avancini em Kyoto não conseguiram chamar a atenção dos alunos até o dia em que entrou na sala de aula com o violão. “Comecei a dedilhar Garota de Ipanema e fui descrevendo a jovem de biquíni em direção ao mar. Os alunos, enfim, ficaram atentos se imaginando sob o sol tropical do Rio de Janeiro”, conta o professor. O clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes garantiu o ritmo harmonioso das demais aulas e a parceria de Avancini com o professor músico, Shiro Iyanaga. Ambos passaram a compor juntos várias canções. “Eu não sabia que os japoneses gostavam tanto de música brasileira, especialmente de bossa nova.”

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O cotidiano do Japão resultou em exposições, músicas, haikais – Foto: Joel La Laina Sene
O cotidiano do Japão resultou em exposições, músicas, haicais – Foto: Joel La Laina Sene

O Japão dos dekasseguis

Cada professor atravessou o oceano levando, em seu alforje, um retalho do sonho que teceu no Brasil e, especialmente, na USP. Dilma de Melo Silva levou a raiz da cultura africana que vem plantando em suas aulas na ECA há décadas. E teve uma surpresa que narra no livro. “Em sala de aula, conheci filhos de dekassegui, que residem em Hamamatsu – cidade do norte de Kyoto, na direção de Tóquio. Fui visitá-los em duas ocasiões. Em uma delas, levaram-me para conhecer um pai de santo que tem um terreiro de umbanda com muitos adeptos, nissei ou sansei. Foi algo extraordinário participar de toques de umbanda, cantando pontos em português para pretos velhos, caboclos, pombagiras, mas sem tambores.”
Dilma ficou surpresa. Percebeu que a religiosidade de matriz africana acompanhou os brasileiros do outro lado do oceano. Aprendeu com os dekasseguis e também com os japoneses. Aprendeu a sintetizar as impressões da paisagem em haicais. Dilma escreveu inúmeros. Uma mostra da delicadeza desses poemas está no livro:

Brotos surgindo
Aragem esquecida
Promessas no ar

Folhas ao vento
Pensamento longe
Vaga neblina

Chuva fina cai
Arco-íris de carpas
Próximo o adeus

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20170109_kyoto03Paisagens que inspiraram os professores artistas – Foto: Joel La Laina Sene
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Crônica fotográfica

A passagem das estações, o dia a dia nos trens, nos restaurantes foram registrados pelo paulistano Joel La Laina Sene. São cenas que transcendem a fotografia. Sugerem um enredo, uma sequência. O professor do Departamento de Cinema, Rádio e TV filma com a máquina fotográfica. “A fotografia é um artifício de memória. Por isso, como fotógrafo, me perco no espaço e tempo desconhecido para lembrar que estive lá por esses instantes especiais”, justifica Sene. “Estou sempre em busca de uma narrativa.”

Sene foi para o Japão acompanhado da artista plástica Maria Luiza, “companheira de ECA/USP e de vida”, como ele próprio define. E, nessa estadia, desenvolveu o conceito de fotógrafo cronista. “Durante esse ano no Japão, o meu olhar de fotógrafo esteve a serviço da crônica. Realizei um conjunto imenso de imagens e séries fotográficas.” Também Maria Luiza, ou Loli como é conhecida, passou a se dedicar à cerâmica e a moldar peças que aliam a funcionalidade à arte.
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Um ensaio que traz cores aos textos - Foto: Joel La Laina Sene
Um ensaio que traz cores aos textos – Foto: Joel La Laina Sene

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O ensaio do “fotógrafo cronista” dá cores aos textos dos professores. Célia Maria de Moraes Dias, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo, conta a sua história planejando para levar o melhor do Brasil – música, dança, cinema, literatura – para os estudantes japoneses. “Os alunos não entendiam bem o português falado, com exceção daqueles que já haviam estado no exterior por um tempo, no Brasil ou em Portugal e, esses, eram poucos. Conseguiam ler, mas com dificuldade e muito uso de dicionário, o que inviabilizou meus projetos de leituras ou discussão dos textos mais avançados que eu havia preparado.”

Célia percebeu que “era hora de jogar tudo no lixo: textos, materiais, comportamentos usuais no Brasil”. E acertou quando voltou às suas raízes na ECA, apresentando as aulas pelo viés do turismo, mostrando os contrastes dos lugares e das culturas. “Parti das regiões do Brasil, onde se abordava, por exemplo, aspectos ambientais e culturais, geografia, relevo, rios, imagens, música, dança, árvores, modos de falar, gírias, modas, expressões idiomáticos. Havia tanto a mostrar que, a cada dia, se interessavam mais.”
No esforço diário de despertar o interesse dos estudantes, Célia preparou um programa especial. “Posso dizer que a aula de feijoada, em que a levei pré-preparada nunca será esquecida. Foi servida com a poesia de Vinicius de Moraes, para ler e traduzir, e ainda um vídeo ilustrado com a música de Chico Buarque de Holanda.”
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O desafio de viver uma cultura diferente - Foto: Joel La Laina Sene
O desafio de viver uma cultura diferente – Foto: Joel La Laina Sene

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Tsunami no jardim zen

“Apesar de embarcar para o Japão 20 dias após o fatídico tsunami que ocorreu em março de 2011, a experiência que tive neste país foi surpreendente a cada instante e efetivamente mudou a minha forma de ver o mundo… ” – Marco Garaude Giannotti, artista e professor do Departamento de Artes Plásticas, também fala da sua perplexidade diante da cultura japonesa. “O Oriente, que sempre me pareceu algo inalcançável, apesar de continuar assim em determinados aspectos, se mostra agora mais humano. Viver em uma cidade onde as crianças, em torno dos seis anos de idade, começam a ir para as escolas sozinhas é algo comovente e admirável. Perceber grandes metrópoles, como Tóquio, que podem em alguns momentos ser silenciosas, limpas e de fácil acesso mediante o transporte público, é algo que deveria servir de exemplo para as grandes cidades brasileiras.”
O maior tsunami vivido pelo professor foi no seu retorno ao Brasil. “Foi difícil me acostumar com a vida caótica das nossas cidades. Depois de um ano indo trabalhar de bicicleta, sempre passando pelo interior de Myoshin-ji, famoso complexo de templos budistas.” Certo é que as impressões sobre a cultura japonesa deixaram registros na arte de Marco Giannotti. E fluíram em Diário de Kyoto, mostra documental e também no livro lançados no Instituto Tomie Ohtake.
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Imagens que traduzem a ausência e a presença da luz – Foto: Joel La Laina Sene
Imagens que traduzem a ausência e a presença da luz – Foto: Joel La Laina Sene

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Avesso do mundo

Como bom jornalista, o professor José Luiz Proença, do Departamento de Jornalismo e Editoração, foi registrando o cotidiano do Japão. Mas não em notícias ou simples textos. Resolveu sintetizar em aforismo. Ou seja, uma anotação muito breve, que não exige a reflexão do haicai, porém, é simples e objetiva. Proença escreve assim, rapidamente:

Mangá: “Não é só de quadrinhos que vivem as livrarias sempre cheias. Gente sem dinheiro aproveita o tudo disponível ao consumidor para ler de graça”.

Shashin: “Japonês fotografa tudo. Piada de colega japonês conhecedor do espírito brasileiro”.

O contrário das chaves: “Tudo que abre fecha. Tudo que fecha, abre”.

Prateleira: “Nunca entre num grande magazine sem saber o que comprar. Os produtos são tantos, as marcas são tantas, que o jeito é voltar outra vez. A vantagem é que você pode tocar tudo, experimentar tudo”.
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Nas ruas, a paixão dos japoneses por fotografar - Foto: Joel La Laina Sene
Nas ruas, a paixão dos japoneses por fotografar – Foto: Joel La Laina Sene

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Recortes de uma experiência

“Quando criança, em Minas Gerais, Nihon se apresentava como o (um) outro lado do mundo. Dizia-se que se cavássemos um buraco profundo iríamos sair no Japão. Acolhi em mim essa possibilidade mágica, e agora aqui estou, vendo o Brasil como o (um) outro lado, tecendo experiências, recortes, como um desfile de uma escola de samba, compondo o meu próprio Carnaval.” – Felisberto Sabino da Costa, professor de Artes Cênicas, compôs o seu texto sobre a experiência no Japão, como se estivesse delineando um roteiro para teatro. As cenas entram exatamente como um desfile de escola de samba.
Criativo , apresenta a comissão de frente, o carro abre-alas, o mestre-sala e porta-bandeira, o puxador de samba e consegue sugerir a fantasia e a realidade, as alegorias e os adereços de viver e contemplar as estações do ano. “Findo o desfile, os portões se fecham para a entrada de uma nova escola. Terminada essa experiência afirmo: há um outro dentro de mim que age. Otsukare sama desu!

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Professores lembram a emoção de contemplar as cerejeiras - Foto: Joel La Laina Sene
Professores lembram a emoção de contemplar as cerejeiras – Foto: Joel La Laina Sene

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Beleza fugidia

O passar das estações no ser dos japoneses está no texto de Ivan Siqueira, professor do Departamento de Informação e Cultura. “Fazia frio e as ruas se deixavam cobrir pelas tênues tonalidades compassadas entre o branco e o vermelho das cerejeiras. Multidões organizadas ondulavam-se pela geometria desconhecida da cidade capital em busca do melhor foco para tentar imobilizar em lentes imaginárias a fragilidade e a fugacidade dos pontos de luz que pairavam na copa do céu das pequenas grandes árvores”, descreve Siqueira.

A influência das cores das estações no ser japonês – Foto: Joel La Laina Sene
A influência das cores das estações no ser japonês – Foto: Joel La Laina Sene

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“Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa” – Sob essa frase de Guimarães Rosa, o professor explica o estar no Japão. Siqueira também trouxe para os alunos o ritmo da música brasileira. “Cheguei a improvisar com alguns alunos e o professor e pianista Shiro Iyanaga alguns sambas e bossas entre tamborins, violões, piano e palma da mão. O poder da música brasileira é difícil de mensurar. Uma força que amolece, alegre, esquenta e coloca a gente a mexer – ainda que parcialmente descompassadas – num tempo saboroso propício ao humano.”
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Nuances do cotidiano japonês estão no livro Ponte Cultural – Foto: Joel La Laina Sene

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20170109_livro_ponte_culturalPonte Cultural, organização Atílio Avancini, fotos Joel La Laina Sene – Livro com 144 páginas, edição ECA USP / São Paulo. A edição foi impressa em comemoração aos 50 anos da Escola de Comunicações e Artes para circular nas bibliotecas da Universidade de São Paulo

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Confira a galeria de imagens do livro:

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