Leia a última tradução publicada de Boris Schnaiderman

O poema Festim em Tempo de Peste, do poeta russo Alexander S. Púschkin, com tradução e introdução do professor da USP, está publicado na mais recente edição da Revista USP, ainda em circulação

 20/05/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 20/06/2018 as 10:51

Leia a seguir o poema Festim em Tempo de Peste, de Alexander S. Púschkin (1799-1837), publicado na Revista USP, com tradução e introdução de Boris Schnaiderman, professor da USP que morreu no dia 18, quarta-feira, aos 99 anos.

Alexander S. Púschkin - Foto: Wikimedia Commons
Alexander S. Púschkin – Foto: Wikimedia Commons

Conforme uma nota às Obras Completas de Púschkin, em dez volumes, da Editora da Academia de Ciências da URSS (Moscou, 1957), o texto do poeta russo data de 1830 e constitui tradução de uma cena do poema dramático de John Wilson, A Cidade da Peste (The City of the Plague, 1816). As canções de Mary e do Presidente, nele incluídas, ainda de acordo com a mesma nota, são um acréscimo de Púschkin e não lembram de modo algum canções do próprio John Wilson. Na peça deste, descreve-se a peste de Londres em 1665.

O interesse de Púschkin por esse tema se deve certamente ao fato de estar grassando então na Rússia uma epidemia de cólera, que era frequentemente chamada de peste.

Essa peça entrou no rol das obras mais difundidas da tradição poética russa, e a expressão “festim em tempo de peste” se tornou uma frase feita que circulou em diversas circunstâncias históricas do país.

Curiosamente, nos países de língua inglesa, parece que não se atribuiu a mesma importância a John Wilson. Assim, a edição de 1995 da Enciclopédia Britânica simplesmente omite o seu nome, embora ele figure com dados biográficos em edições anteriores. O pouco apreço dos ingleses por sua obra pode ser confirmado pelo fato de que a notícia biográfica, incluída na edição da Britânica de 1954, não se refere sequer a seu poema sobre a peste.

         Festim em Tempo de Peste

Uma rua. Mesa posta. Alguns homens e mulheres se banqueteiam.

.

Um Jovem

Mui digno Presidente! Vou lembrar

Um homem muito conhecido nosso,

Cujas chalaças, casos engraçados,

Ditos agudos, mais observações

Tão doidas, mas em divertida empáfia,

Vivificavam nossa prosa à mesa,

Aniquilando a treva, que hoje em dia

O contágio, nosso hóspede, nos manda

E arrasa nossas mentes mais agudas.

Dois dias faz, em nosso riso a glória

De seus relatos retinia assaz.

Será que em nosso alegre banquetear

Se esqueça Jackson? Eis sua poltrona

Vazia, como que parada à espera

Do folgazão. Mas ele já partiu

Para as moradas frias do subsolo…

Embora sua linguagem eloquente

Não se calasse à beira do caixão,

Ainda somos muitos e não temos

Motivo de tristeza, e eu proponho

Bebermos à memória sua, ao alegre

Soar dos cálices, dos ahs, dos gritos

Como se ele estivesse aqui, conosco.

.

O Presidente

Ele foi o primeiro a nos deixar.

Pois digo, ao silenciar assim, bebamos

À sua memória e honra para sempre.

.

Um Jovem

Que seja assim e seja eternamente.

(Todos bebem em silêncio.)

.

O Presidente

Tua voz, querida, traz-nos sons amenos

Dos cantos pátrios, perfeição estranha:

Entoa-nos, Mary, lenta e tristemente,

Para, depois, voltarmos à alegria,

Mais loucamente, como alguém da terra

É expulso por um sonho, uma visão.

.

Mary (canta)

Houve um tempo, florescia

Neste mundo nossa gente,

Aos domingos já se enchia

Toda a igreja de repente;

Na ruidosa escola, as vozes

Dos nossos guris soavam

E no campo, bem velozes,

Foice e gadanha brilhavam.

.

Hoje a igreja está vazia,

E a escola foi trancada;

Os frutos apodreciam;

A mata jaz devastada.

E a aldeia, qual um prédio

Pós-sinistro, está de pé.

Tudo quieto. Este é o assédio

Do além-morte à nossa fé.

.

Trazem mortos a toda hora

E gemidos de homens vivos

Ao senhor pedem agora

Paz às almas dos esquivos.

Falta espaço lado a lado

E os jazigos entre si,

Qual um rebanho assustado

Se comprimem, frenesi.

Se um jazigo prematuro

Coube a minha primavera,

Tu, amor meu, o mais puro,

Cujo afeto me assevera

Dita extrema, eu te imploro,

Distancia-te de Jenny,

Não lhe toques lábio morto,

Fica bem, como quem teme.

.

E depois deixa esta aldeia

Por alguma terra estranha

Onde a alma que pranteia

Ache a paz que a dor amaina.

E quando passar esta onda,

Visita meus pobres restos,

Pois Jenny não abandona

Edmond nem nos céus excelsos.

.

O Presidente

Agradecemos, pensativa Mary,

Esta canção tão triste é um lamento.

Em dias idos, uma peste igual

Varreu os vossos vales e colinas,

Gemidos tristes bem que ressoavam

À margem dos riachos e dos rios

Que hoje despencam em paz e alegria

No paraíso rude de tua terra;

E o ano sinistro em que tombaram tantos

Valentes, bons e belas criaturas,

Mal deixa atrás uma lembrança vaga

Numa simples canção de pastoreio,

Tristonha e agradável… Não, pois nada

Nos entristece tanto nos festejos

Como um som langue, bem do coração.

.

Mary

Ou se jamais, jamais eu bem cantasse

Fora da casinhola de meus pais!

Bem lhes fazia ouvir sua filha Mary:

Eu como que ouço o meu próprio canto

À porta da vivenda familiar.

Eu tinha voz mais doce então, pois era

Voz da inocência

.

Luísa

Estão fora de moda

Estas canções. Pois bem, no entanto, existem

As almas simples: elas se derretem

Com pranto de mulher aceito às cegas.

Segundo ela, seu olhar choroso

É imbatível, mas, se fosse assim,

O mesmo ela diria de seu riso

E sorriria sempre. Um dia, Walsinham

Louvou belas do norte, ela então

Gemeu de triste. Ouçam: eu detesto

Estes cabelos louros escoceses.

.

O Presidente

Escutem: ouço rodas avançando.

(Chega uma carroça repleta de cadáveres, dirigida por um negro.)

.

Ah! Luísa se sente mal. Pensava

Que ela tivesse um coração de homem,

Mas um ser cruel é fraco ante um bondoso.

O medo vive na alma apaixonada.

Esparge, Mary, água no seu rosto.

Já está melhor.

.

Mary

Irmã desta tristeza e da vergonha,

Deita em meu colo.

.

Luísa (voltando a si)

Um demônio terrível

Me apareceu: bem negro, de olhos brancos,

Chamou-me à sua carroça, onde jaziam

Mortos, e estes agora murmuravam

Um discurso terrível e ignorado…

Disse-me: “Foi um sonho que eu tivera?

A carroça partiu?”

.

Um Jovem

Ora, Luísa,

Alegra-te: a rua é toda nossa,

Refúgio quieto contra a mortandade,

Abrigo de festins imperturbáveis,

Mas – sabes tu? – esta carroça negra

Tem o direito de rodas às claras.

Nós temos que a aceitar. Ouça-me agora,

Walsinham, pra evitar maiores brigas,

Desmaios de mulher e coisas tantas,

Entoa um canto livre e bem vivaz,

Avesso a essas tristezas de escocês,

Um canto báquico bem tumultuoso,

Surgido com a taça borbulhante.

.

O Presidente

Não sei de nada igual, mas fiz um hino

Louvando a peste, bem, eu o escrevi

Ao despedir-nos ontem, à noitinha.

Surgiu-me um gosto estranho pelas rimas,

Foi a primeira vez na vida, e me ouçam:

Minha voz rouca é boa pra este canto.

.

Muitos

Um hino à Peste! Vamos, pois, ouvi-lo!

Um hino à Peste! Bravo! Bravo! Bravo!

.

O Presidente (canta)

Chegou o poderoso Inverno

E investe contra nós, do Inferno,

Sua tropa hirsuta e sobranceira

De neve, gelo e frio extremo.

Resposta: crepita a lareira

E há farras de assustar o demo.

*

Rainha bem severa, a Peste

Se assanha contra nós, investe,

Alegre co’a colheita farta,

E no postigo, noite e dia,

Bate a pá tumular: que parta!

O que fazer nesta agonia?

*

Livres do Inverno brincalhão,

Fugindo à Peste em confusão,

Luzes acesas, taça cheia,

Num alegre afogar da mente,

Em meio a bailes, eia!, eia!

Ergamos nosso viva à Peste.

*

Há êxtase em meio da batalha,

E à beira de um abismo – valha! –

E no oceano enfurecido,

De ondas terríveis, vento e treva,

No tufão árabe – um remoinho –

Na ventania que a Peste leva.

*

Tudo o que ameaça destruição

Guarda uma estranha fruição

P’ro coração de um ser mortal,

Penhor talvez do que é eterno.

Feliz quem bem no tremedal

Soube vivê-lo termo a termo.

*

Portanto, glória a ti, ó Peste,

Não nos assusta o além que investe

Contra nós nesse teu apelo.

Erguendo a taça em gesto amigo,

Colhemos o hálito singelo

Talvez da Peste… ouve o que eu digo.

.

(Aparece um velho sacerdote.)

.

Sacerdote

Festim sem Deus, loucos sem divindade!

Com essas farras e canções perversas

Vós ofendeis o silêncio sinistro

Que a morte espalha em toda parte às cegas!

No horror destes enterros tão pranteados,

Em meio às faces pálidas eu rezo,

Mas vossos júbilos indecorosos

Rompem esta quietude dos enterros

E abalam o silêncio tumular.

Se as orações dos anciães e esposas

Não redimissem a vala comum,

Eu pensaria que os demônios doidos

Ficam dilacerando os sem-Deus

E a gargalhar os levam aos Infernos.

.

Algumas vozes

Ele trata do inferno como um mestre.

Avante, velho! Segue em teu caminho.

.

Sacerdote

Eu vos conjuro pelo santo sangue

Do Redentor, por nós morto na cruz:

Fora o festim monstruoso, se quereis

Achar nos céus as almas tão amadas,

Ide cada um em busca de seu lar.

.

O Presidente

As nossas casas hoje vivem tristes,

E a juventude gosta de alegria.

.

Sacerdote

És Walsinham? És tu aquele mesmo

Que há três semanas, caído de joelhos,

Tua mãe morta, em prantos, abraçavas

E aos berros sacudias seu jazigo?

Ou pensas que ela agora não pranteia

Amargamente, erguida em pleno céu,

Vendo o filho farrear aqui na terra

E ouvindo tua voz num canto doido,

Após as santas rezas e os suspiros?

Segue-me!

.

O Presidente

Ora, dirás, pra que vieste

E me inquietas? Eu não posso ou devo

Seguir-te agora, pois é o desespero

Que me retém, esta lembrança horrível,

A consciência da vida sem lei,

O horror daquele vácuo mortal

Que reina agora em minha casa às claras

E o novo destas alegrias loucas,

E o bom veneno desta minha taça,

E os carinhos (perdoa-me, Senhor!)

De um ser querido que morreu agora…

A sombra maternal não vai chamar-me

– É tarde, eu ouço tua voz agora,

Ela me chama, eu reconheço o esforço

De me salvar… ancião, bem, parte em paz;

Maldito seja quem seguir teu rasto.

.

Muitos

Bravos! Bravos! Mui digno Presidente!

Recebeste um sermão! Embora! Embora!

.

Sacerdote

Matilde, esp’rito puro é quem te chama!

 .

O Presidente (erguendo-se)

Jura-me, a mão pálida erguida aos céus,

Pálida, murcha, que hás de abandonar

Em seu caixão nome que se cala!

Oh, se eu pudesse ao seu olhar eterno

Varrer esta visão! Pois ela outrora

Me via puro, livre e orgulhoso

E um paraíso certo nos meus braços…

Onde? Filha santa da luz! Eu vejo

Que estás onde o espírito caído

Meu não te alcança mais…

.

Uma voz feminina

Ele está louco…

Sonha com a mulher em seu jazigo.

.

Sacerdote

Vamos…

.

O Presidente

Eu peço, pelo amor de Deus,

Deixe-me em paz.

.

Sacerdote

Senhor seja contigo.

Adeus, meu filho.

.

(Sai. O festim prossegue. O Presidente permanece profundamente pensativo.)

 



.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.