Leia a seguir o poema Festim em Tempo de Peste, de Alexander S. Púschkin (1799-1837), publicado na Revista USP, com tradução e introdução de Boris Schnaiderman, professor da USP que morreu no dia 18, quarta-feira, aos 99 anos.
Conforme uma nota às Obras Completas de Púschkin, em dez volumes, da Editora da Academia de Ciências da URSS (Moscou, 1957), o texto do poeta russo data de 1830 e constitui tradução de uma cena do poema dramático de John Wilson, A Cidade da Peste (The City of the Plague, 1816). As canções de Mary e do Presidente, nele incluídas, ainda de acordo com a mesma nota, são um acréscimo de Púschkin e não lembram de modo algum canções do próprio John Wilson. Na peça deste, descreve-se a peste de Londres em 1665.
O interesse de Púschkin por esse tema se deve certamente ao fato de estar grassando então na Rússia uma epidemia de cólera, que era frequentemente chamada de peste.
Essa peça entrou no rol das obras mais difundidas da tradição poética russa, e a expressão “festim em tempo de peste” se tornou uma frase feita que circulou em diversas circunstâncias históricas do país.
Curiosamente, nos países de língua inglesa, parece que não se atribuiu a mesma importância a John Wilson. Assim, a edição de 1995 da Enciclopédia Britânica simplesmente omite o seu nome, embora ele figure com dados biográficos em edições anteriores. O pouco apreço dos ingleses por sua obra pode ser confirmado pelo fato de que a notícia biográfica, incluída na edição da Britânica de 1954, não se refere sequer a seu poema sobre a peste.
Festim em Tempo de Peste
Uma rua. Mesa posta. Alguns homens e mulheres se banqueteiam.
.
Um Jovem
Mui digno Presidente! Vou lembrar
Um homem muito conhecido nosso,
Cujas chalaças, casos engraçados,
Ditos agudos, mais observações
Tão doidas, mas em divertida empáfia,
Vivificavam nossa prosa à mesa,
Aniquilando a treva, que hoje em dia
O contágio, nosso hóspede, nos manda
E arrasa nossas mentes mais agudas.
Dois dias faz, em nosso riso a glória
De seus relatos retinia assaz.
Será que em nosso alegre banquetear
Se esqueça Jackson? Eis sua poltrona
Vazia, como que parada à espera
Do folgazão. Mas ele já partiu
Para as moradas frias do subsolo…
Embora sua linguagem eloquente
Não se calasse à beira do caixão,
Ainda somos muitos e não temos
Motivo de tristeza, e eu proponho
Bebermos à memória sua, ao alegre
Soar dos cálices, dos ahs, dos gritos
Como se ele estivesse aqui, conosco.
.
O Presidente
Ele foi o primeiro a nos deixar.
Pois digo, ao silenciar assim, bebamos
À sua memória e honra para sempre.
.
Um Jovem
Que seja assim e seja eternamente.
(Todos bebem em silêncio.)
.
O Presidente
Tua voz, querida, traz-nos sons amenos
Dos cantos pátrios, perfeição estranha:
Entoa-nos, Mary, lenta e tristemente,
Para, depois, voltarmos à alegria,
Mais loucamente, como alguém da terra
É expulso por um sonho, uma visão.
.
Mary (canta)
Houve um tempo, florescia
Neste mundo nossa gente,
Aos domingos já se enchia
Toda a igreja de repente;
Na ruidosa escola, as vozes
Dos nossos guris soavam
E no campo, bem velozes,
Foice e gadanha brilhavam.
.
Hoje a igreja está vazia,
E a escola foi trancada;
Os frutos apodreciam;
A mata jaz devastada.
E a aldeia, qual um prédio
Pós-sinistro, está de pé.
Tudo quieto. Este é o assédio
Do além-morte à nossa fé.
.
Trazem mortos a toda hora
E gemidos de homens vivos
Ao senhor pedem agora
Paz às almas dos esquivos.
Falta espaço lado a lado
E os jazigos entre si,
Qual um rebanho assustado
Se comprimem, frenesi.
Se um jazigo prematuro
Coube a minha primavera,
Tu, amor meu, o mais puro,
Cujo afeto me assevera
Dita extrema, eu te imploro,
Distancia-te de Jenny,
Não lhe toques lábio morto,
Fica bem, como quem teme.
.
E depois deixa esta aldeia
Por alguma terra estranha
Onde a alma que pranteia
Ache a paz que a dor amaina.
E quando passar esta onda,
Visita meus pobres restos,
Pois Jenny não abandona
Edmond nem nos céus excelsos.
.
O Presidente
Agradecemos, pensativa Mary,
Esta canção tão triste é um lamento.
Em dias idos, uma peste igual
Varreu os vossos vales e colinas,
Gemidos tristes bem que ressoavam
À margem dos riachos e dos rios
Que hoje despencam em paz e alegria
No paraíso rude de tua terra;
E o ano sinistro em que tombaram tantos
Valentes, bons e belas criaturas,
Mal deixa atrás uma lembrança vaga
Numa simples canção de pastoreio,
Tristonha e agradável… Não, pois nada
Nos entristece tanto nos festejos
Como um som langue, bem do coração.
.
Mary
Ou se jamais, jamais eu bem cantasse
Fora da casinhola de meus pais!
Bem lhes fazia ouvir sua filha Mary:
Eu como que ouço o meu próprio canto
À porta da vivenda familiar.
Eu tinha voz mais doce então, pois era
Voz da inocência
.
Luísa
Estão fora de moda
Estas canções. Pois bem, no entanto, existem
As almas simples: elas se derretem
Com pranto de mulher aceito às cegas.
Segundo ela, seu olhar choroso
É imbatível, mas, se fosse assim,
O mesmo ela diria de seu riso
E sorriria sempre. Um dia, Walsinham
Louvou belas do norte, ela então
Gemeu de triste. Ouçam: eu detesto
Estes cabelos louros escoceses.
.
O Presidente
Escutem: ouço rodas avançando.
(Chega uma carroça repleta de cadáveres, dirigida por um negro.)
.
Ah! Luísa se sente mal. Pensava
Que ela tivesse um coração de homem,
Mas um ser cruel é fraco ante um bondoso.
O medo vive na alma apaixonada.
Esparge, Mary, água no seu rosto.
Já está melhor.
.
Mary
Irmã desta tristeza e da vergonha,
Deita em meu colo.
.
Luísa (voltando a si)
Um demônio terrível
Me apareceu: bem negro, de olhos brancos,
Chamou-me à sua carroça, onde jaziam
Mortos, e estes agora murmuravam
Um discurso terrível e ignorado…
Disse-me: “Foi um sonho que eu tivera?
A carroça partiu?”
.
Um Jovem
Ora, Luísa,
Alegra-te: a rua é toda nossa,
Refúgio quieto contra a mortandade,
Abrigo de festins imperturbáveis,
Mas – sabes tu? – esta carroça negra
Tem o direito de rodas às claras.
Nós temos que a aceitar. Ouça-me agora,
Walsinham, pra evitar maiores brigas,
Desmaios de mulher e coisas tantas,
Entoa um canto livre e bem vivaz,
Avesso a essas tristezas de escocês,
Um canto báquico bem tumultuoso,
Surgido com a taça borbulhante.
.
O Presidente
Não sei de nada igual, mas fiz um hino
Louvando a peste, bem, eu o escrevi
Ao despedir-nos ontem, à noitinha.
Surgiu-me um gosto estranho pelas rimas,
Foi a primeira vez na vida, e me ouçam:
Minha voz rouca é boa pra este canto.
.
Muitos
Um hino à Peste! Vamos, pois, ouvi-lo!
Um hino à Peste! Bravo! Bravo! Bravo!
.
O Presidente (canta)
Chegou o poderoso Inverno
E investe contra nós, do Inferno,
Sua tropa hirsuta e sobranceira
De neve, gelo e frio extremo.
Resposta: crepita a lareira
E há farras de assustar o demo.
*
Rainha bem severa, a Peste
Se assanha contra nós, investe,
Alegre co’a colheita farta,
E no postigo, noite e dia,
Bate a pá tumular: que parta!
O que fazer nesta agonia?
*
Livres do Inverno brincalhão,
Fugindo à Peste em confusão,
Luzes acesas, taça cheia,
Num alegre afogar da mente,
Em meio a bailes, eia!, eia!
Ergamos nosso viva à Peste.
*
Há êxtase em meio da batalha,
E à beira de um abismo – valha! –
E no oceano enfurecido,
De ondas terríveis, vento e treva,
No tufão árabe – um remoinho –
Na ventania que a Peste leva.
*
Tudo o que ameaça destruição
Guarda uma estranha fruição
P’ro coração de um ser mortal,
Penhor talvez do que é eterno.
Feliz quem bem no tremedal
Soube vivê-lo termo a termo.
*
Portanto, glória a ti, ó Peste,
Não nos assusta o além que investe
Contra nós nesse teu apelo.
Erguendo a taça em gesto amigo,
Colhemos o hálito singelo
Talvez da Peste… ouve o que eu digo.
.
(Aparece um velho sacerdote.)
.
Sacerdote
Festim sem Deus, loucos sem divindade!
Com essas farras e canções perversas
Vós ofendeis o silêncio sinistro
Que a morte espalha em toda parte às cegas!
No horror destes enterros tão pranteados,
Em meio às faces pálidas eu rezo,
Mas vossos júbilos indecorosos
Rompem esta quietude dos enterros
E abalam o silêncio tumular.
Se as orações dos anciães e esposas
Não redimissem a vala comum,
Eu pensaria que os demônios doidos
Ficam dilacerando os sem-Deus
E a gargalhar os levam aos Infernos.
.
Algumas vozes
Ele trata do inferno como um mestre.
Avante, velho! Segue em teu caminho.
.
Sacerdote
Eu vos conjuro pelo santo sangue
Do Redentor, por nós morto na cruz:
Fora o festim monstruoso, se quereis
Achar nos céus as almas tão amadas,
Ide cada um em busca de seu lar.
.
O Presidente
As nossas casas hoje vivem tristes,
E a juventude gosta de alegria.
.
Sacerdote
És Walsinham? És tu aquele mesmo
Que há três semanas, caído de joelhos,
Tua mãe morta, em prantos, abraçavas
E aos berros sacudias seu jazigo?
Ou pensas que ela agora não pranteia
Amargamente, erguida em pleno céu,
Vendo o filho farrear aqui na terra
E ouvindo tua voz num canto doido,
Após as santas rezas e os suspiros?
Segue-me!
.
O Presidente
Ora, dirás, pra que vieste
E me inquietas? Eu não posso ou devo
Seguir-te agora, pois é o desespero
Que me retém, esta lembrança horrível,
A consciência da vida sem lei,
O horror daquele vácuo mortal
Que reina agora em minha casa às claras
E o novo destas alegrias loucas,
E o bom veneno desta minha taça,
E os carinhos (perdoa-me, Senhor!)
De um ser querido que morreu agora…
A sombra maternal não vai chamar-me
– É tarde, eu ouço tua voz agora,
Ela me chama, eu reconheço o esforço
De me salvar… ancião, bem, parte em paz;
Maldito seja quem seguir teu rasto.
.
Muitos
Bravos! Bravos! Mui digno Presidente!
Recebeste um sermão! Embora! Embora!
.
Sacerdote
Matilde, esp’rito puro é quem te chama!
.
O Presidente (erguendo-se)
Jura-me, a mão pálida erguida aos céus,
Pálida, murcha, que hás de abandonar
Em seu caixão nome que se cala!
Oh, se eu pudesse ao seu olhar eterno
Varrer esta visão! Pois ela outrora
Me via puro, livre e orgulhoso
E um paraíso certo nos meus braços…
Onde? Filha santa da luz! Eu vejo
Que estás onde o espírito caído
Meu não te alcança mais…
.
Uma voz feminina
Ele está louco…
Sonha com a mulher em seu jazigo.
.
Sacerdote
Vamos…
.
O Presidente
Eu peço, pelo amor de Deus,
Deixe-me em paz.
.
Sacerdote
Senhor seja contigo.
Adeus, meu filho.
.
(Sai. O festim prossegue. O Presidente permanece profundamente pensativo.)
.