Filósofos do direito debatem imigração muçulmana, laicidade e seus dilemas jurídicos

Em evento na Faculdade de Direito da USP, os filósofos Mario Giuseppe Losano e Alfonso Ruiz-Miguel – dois dos principais intérpretes do filósofo italiano Norberto Bobbio – veem muitas dificuldades e poucas soluções para a questão islâmica na Europa

 23/08/2016 - Publicado há 8 anos
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Da esq. para a dir: Celso Azzi, Celso Lafer, Mario Losano, Monica Herman Caggiaro, Celso Campilongo e José Rogério Cruz e Tucci – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Precisamos mudar nosso vocabulário ao tratar da questão islâmica na Europa. A palavra ‘imigração’ não dá certo.” Com essa afirmação, o professor e filósofo italiano Mario Giuseppe Losano, da Universidade de Turim, na Itália, iniciou sua fala na conferência Pluralismo jurídico na Europa: os problemas jurídicos da imigração muçulmana, que ocorreu no dia 22 de agosto, na Faculdade de Direito da USP, em evento organizado pelo Instituto Norberto Bobbio. Losano é o único assistente vivo do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) na área de filosofia do direito. Além de Losano, o também professor e filósofo Alfonso Ruiz-Miguel, da Universidad Autónoma de Madrid, na Espanha, deu palestra sobre Laicidade, laicismo e liberdade religiosa. Ruiz-Miguel é o mais importante tradutor de Bobbio na Espanha, tendo sido elogiado pelo próprio Bobbio.

Em sua participação, Losano traçou, sob a ótica do direito e até mesmo da linguagem, um panorama das dificuldades em se tratar das imensas populações islâmicas que há décadas buscam moradia ou refúgio na Europa, movimento que se intensificou nos últimos anos graças à guerra na Síria e ao surgimento do autoproclamado Estado Islâmico (EI). Segundo Losano, a situação é particularmente complicada para seu país, a Itália. “Países islâmicos ricos, como a Arábia Saudita, não aceitam migrantes muçulmanos, o que faz com que eles venham para a Europa. Pela posição geográfica da Itália, no Mediterrâneo, é lá que essas populações chegam primeiro, e a costa é muito extensa, portanto um controle das fronteiras é impraticável.” Ele critica ainda a posição de outros países da União Europeia (UE) – que, segundo ele, “é europeia, mas não é uma união” – de fechar suas fronteiras. “Com isso, essas pessoas chegam à Itália e ficam na Itália. Calcula-se que 10% da população italiana hoje seja composta por migrantes, que vêm dos mais diversos países, e essa conta não considera os migrantes clandestinos.”

Mário Giuseppe Lasano (Universitá di Torino) e Alfonso Ruiz-Miguel (Universidad Autónoma de Madrid) - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Mario Giusepp Losano (Universitá di Torino) e Alfonso Ruiz-Miguel (Universidad Autónoma de Madrid) – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Para explicar a dimensão do problema, o filósofo comparou o nascimento e a evolução do cristianismo no Império Romano com o surgimento dos Estados muçulmanos. Segundo ele, a religião cristã surgiu em meio a um Estado já consolidado, dentro do qual se adaptou e cresceu. Já o islã nasceu como religião em tribos nômades, que então se organizaram em nações. Nesse caso, os Estados muçulmanos seriam apêndices da religião. “Na minha opinião, portanto, a laicidade no islã é impossível. O direito islâmico é de origem divina. No Ocidente, tem origem humana. Falando em pluralismo jurídico, temos que falar do direito islâmico na Europa. A presença de pessoas muçulmanas lá implica outro sistema jurídico.”

Losano abordou essa diferença na questão jurídica. “O direito islâmico é fundado num texto religioso. Quem se ocupa dele são ‘jurisperitos’, teólogos especializados nos textos do Corão que usam seu conhecimento jurídico para interpretar as leis do texto.” Dentre esses intérpretes, Losano distingue três correntes principais: uma maioria de tradicionalistas, presentes, por exemplo, em países como Egito, Marrocos e Tunísia, que interpretam o direito no Corão de acordo com tradições locais, passíveis de variar de acordo com o povo e a cultura; os fundamentalistas, minoria que busca a tradução e aplicação estrita e exata da lei no Corão, como o Irã do Aiatolá Khomeini (líder do país de 1979 a 1989); e os modernistas, minoria representada, por exemplo, pela Turquia de Kemal Atatürk, que liderou o país entre as décadas de 1920 e 1930, fazendo a interpretação do livro sagrado em acordo com o desenvolvimento econômico e social do Ocidente. “As duas minorias tentam conquistar o núcleo central, como em geral acontece. As minorias são o motor da política”, afirma Losano.

Dentro dessas distinções estão fenômenos como o Estado Islâmico e as Primaveras Árabes. Os fundamentalistas do EI, de acordo com Losano, usam perfeitamente as inovações tecnológicas para angariar novos “fieis” à revolução da Jihad. “Isso gera um problema jurídico, pois a privacidade é uma questão de ordem individual, enquanto a segurança é uma questão pública. Como balancear isso? Poderíamos dar outra palestra inteira sobre o tema”, diz o jurista. Segundo ele, o EI gera problemas também de ordem ontológica, pois propicia uma forma autóctone de estruturação estatal. “Por não ser um Estado no sentido ocidental, pratica também uma guerra num sentido distinto do tradicional. O que é o front de batalha? Quem é civil e quem é militar?”

Celso Lafer - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Celso Lafer – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Sobre as Primaveras Árabes, Losano insistiu em que o termo deve ser usado no plural. “Foram tentativas de um islã modernista com constituições ocidentais do pós-guerra. Nós, no Ocidente, as vimos de maneira errada, com ‘óculos ocidentais’. Cada uma delas ocorreu de maneira muito particular, mas as tratamos como se fossem todas um mesmo projeto de desenvolvimento”, analisou. Ele cita as Constituições do Marrocos, que, embora não tenha sido escrita após as Primaveras, é modernista, sendo redigida em árabe e em francês, e da Tunísia, esta, sim, elaborada após a revolução local e que trata, por exemplo, da paridade entre homem e mulher, o que colocou o país na mira do Estado Islâmico.

Losano crê que essa fragmentação entre os próprios muçulmanos dificulta um acordo com a comunidade europeia, do ponto de vista jurídico. “Os choques entre o direito positivo humano e o direito divino do Estado são, na minha visão, inconciliáveis.” Um exemplo dado por ele sobre esse conflito é a questão matrimonial. “Segundo a lei e os costumes muçulmanos, um homem pode casar-se, digamos, com quatro mulheres. Na Europa, porém, só uma delas é legalmente a sua esposa, o que faz com que os filhos que ele tenha com as outras sejam ilegítimos, criando inúmeras complicações em questões sucessórias, além dos direitos de que suas mães são privadas.” Além disso, questões culturais como a opressão à mulher no islã podem gerar atritos. “Uma criança filha de imigrantes e nascida na Alemanha, por exemplo, vê em casa a situação de sua mãe, que não pode sair sem a companhia do marido, não fala alemão, tem o contato com o novo ambiente reprimido. Esses valores acabam sendo transmitidos”, argumenta o filósofo.

Mas, para Losano, houve também problemas na maneira como a integração social dessas populações foi feita nos países europeus. “Na França, as comunidades islâmicas já estão em sua terceira geração, e desde sempre vivem nas periferias e são constantemente bombardeadas de desejos que não podem realizar. Frustradas, encontram refúgio na religião, e aí entra o Estado Islâmico”, avalia. Na Inglaterra, onde a população islâmica também é muito grande e está lá há gerações, a aceitação do direito muçulmano gerou conflitos e movimentos contrários, como o One Law for All (Uma Lei para Todos), enquanto na Espanha a questão matrimonial exemplificada por Losano é um complicador.

Enrique Ricardo Lewandowski - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Enrique Ricardo Lewandowski – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em conclusão, Losano fez uma avaliação da situação presente e do que pode vir pela frente. “Na Europa, a população segue caindo, enquanto em países como a Tunísia, 50% das pessoas estão abaixo dos 18 anos. Estes, então, buscam entrar no mercado de trabalho num país que não tem nem mercado nem trabalho.” Esse fator, além das guerras, seria um dos principais motivos para a ida dessas populações para a Europa, fenômeno com que Losano acredita que o continente deverá conviver pelo menos até 2050. “Não consigo enxergar uma solução. Se tivesse que apontar uma, seria incentivar o desenvolvimento econômico desses países, mas isso não é algo que se faça em cinco anos.”

Em seguida à palestra de Losano, teve início a conferência de Alfonso Ruiz-Miguel. Antes, porém, que este tomasse a palavra, o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor da Faculdade de Direito da USP, fez uma breve introdução, ressaltando a importância do tema de que trataria o professor espanhol. “A discussão sobre o laicismo é fundamental nestes tempos de intolerância que vivemos hoje em nível político, social, religioso e moral, inclusive no Brasil, que sempre foi considerado um país cordial. Há quem diga que nos encaminhamos para uma terceira guerra mundial, portanto é tempo de revertermos esse quadro, de voltarmos a praticar uma cultura de paz.”

Teocracias

Foi também falando em guerra que o professor Ruiz-Miguel começou sua participação no evento. Para ele, até o século 18, “a história ocidental pode ser descrita como uma sucessão de Estados beligerantes orientados pela religião”, com ressalvas apenas para a democracia grega e alguns períodos da história de Roma, em que houve certa separação entre religião e Estado.
Ruiz-Miguel tratou de algumas distinções conceituais, políticas e semânticas entre tipos de laicidade e suas relações com o Estado. Para ele, podem ser definidos três modelos de laicidade: positiva, radical (também chamada de laicismo) e liberal (ou neutra). O professor também diferencia três concepções de Estado: o erastianista, que seria o caso da Inglaterra e sua Igreja Anglicana, no qual a Igreja é subordinada ao Estado; o confessional, em que o Estado assume uma religião oficial; e os Estados teocráticos, em que a política e a lei são ditadas pela religião.

Para ele, porém, “o lugar da religião é no âmbito privado, ela não deve entrar na esfera política ou jurídica”. Defensor do que ele chama de laicidade liberal, Ruiz-Miguel afirma que “a verdadeira laicidade é aquela em que o Estado não só professa, mas pratica e garante a liberdade religiosa e, para tanto, ele deve se manter religiosamente neutro”.

Na laicidade positiva, segundo ele, há privilégio para uma religião em detrimento de outras por parte do Estado. “É uma laicidade pela metade, um paradoxo. O Estado não deve favorecer simbólica ou economicamente nenhuma religião nem considerar que uma seja mais valiosa que a outra política ou juridicamente”, defende. A laicidade radical, ou laicismo, também tem problemas. Ela se configura quando o Estado defende a laicidade de maneira que suprime a liberdade religiosa, como ocorria nos Estados ateus de influência soviética ou com políticas como as proibições a burcas e ao “burkini” na França. “É uma visão antirreligiosa”, define Ruiz-Miguel. “Esse tipo de postura fez com que Norberto Bobbio, que sempre foi um defensor da laicidade, não assinasse o Manifesto Laico na Itália, documento que ele julgou ter um teor laicista, intransigente. Para ele, no laicismo se perdem os princípios laicos.”

Para o professor, a única interferência do Estado no âmbito religioso deve ser no sentido de garantir sua liberdade e a igualdade perante a lei, não importando a religião. “Embora eu não seja um defensor do liberalismo econômico proposto por Adam Smith (1723-1790), sou favorável a algo muito semelhante quando se trata de religião. É dever do Estado apenas garantir que todos tenham liberdade de crer, ou não, naquilo que quiserem. Para o Estado, os ateus também são de Deus.” Isso vale para questões culturais, por exemplo, o descanso dominical, que tem origem religiosa. “Apesar de sua origem, o descanso aos domingos já se tornou tradição, costume, não faz sentido abolir esse tipo de coisa sob a premissa de laicidade. Nesse caso, devemos levar em conta o fator que seja predominante, o cultural e tradicional ou o religioso.”

O professor Celso Lafer, da Faculdade de Direito da USP e membro do Instituto Norberto Bobbio, também sentado à mesa, ressaltou alguns aspectos da relação entre o Estado brasileiro e a religião. Segundo ele, desde o Império estava previsto na Constituição o catolicismo como religião oficial, embora fosse permitida a liberdade de culto, desde que com discrição. Depois, na Constituição de 1891, Rui Barbosa (1849-1923), inspirando-se nos Estados Unidos, decretou a separação entre a religião e o Estado. “Apesar disso, em todas as nossas Constituições o nome de Deus é invocado, o que é curioso”, avalia Lafer.

Analisando o caso recente em que o Itamaraty decidiu não mais conceder passaportes diplomáticos a representantes religiosos, após polêmica pela concessão desses documentos para bispos evangélicos, Lafer fez comentários positivos. “Tradicionalmente o Itamaraty
os expedia para cardeais, então por que não fazer o mesmo com bispos? Isso fere o princípio de não discriminação. Neste momento de diversidade crescente no Brasil, a decisão de deixar de concedê-los foi juridicamente correta e politicamente sábia.”

Lafer falou também sobre a ideia de Bobbio acerca da tolerância. “Trata-se de saber lidar com verdades contrapostas e com aquilo que para a maioria parece diferente.” Questionado sobre o sentimento de o mundo estar cada vez mais intolerante e sobre o retrocesso da secularização (conceito sociológico segundo o qual a sociedade se desvencilha da religião e de aspectos mitológicos e torna-se mais racional), o professor Ruiz-Miguel diz ser difícil fazer previsões. “Talvez um Estado verdadeiramente laico seja a melhor forma de manter a secularização. A história dirá.”


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