Espetáculo debate transgeneridades no mercado profissional

Em cartaz até 29 de junho, “A Demência dos Touros” também aborda vulnerabilidade social e segregação urbana

 26/06/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 14/10/2019 as 13:53
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A Demência dos Touros: a arte como material de pesquisa – Foto: Thaís Barbosa/Divulgação

Com direção de Ines Bushatsky e texto de João Mostazo, A Demência dos Touros, peça da Cia. Teatro do Perverto, apresenta aos espectadores um universo distópico, simbolizado por uma cidade murada onde um pequeno número de indivíduos tem permissão de morar. Todos os habitantes do local são homens e a grande maioria vive do lado de fora — atravessando o muro fortemente policiado somente para trabalhar. Em um meio tão homogêneo, aqueles que têm a audácia de assumir outra performance de gênero são duramente reprimidos e apelidados ardilosamente de “mudadas”, passando a sofrer com preconceito, opressão e outras dificuldades, dentre elas, a exclusão do mercado profissional.
Nesse contexto de segregação urbana criado na peça — muito semelhante ao que se vive atualmente —, instauram-se assuntos polêmicos como a vulnerabilidade social, a discriminação e o fetichismo de poder. “O objetivo da apresentação é provocar a reflexão sobre o lugar das pessoas trans na sociedade, fato não suficientemente conhecido nem discutido”, comenta Dodi Leal, mulher trans e dramaturgista do espetáculo.

O objetivo da apresentação é provocar a reflexão sobre o lugar das pessoas trans na sociedade, fato não suficientemente conhecido nem discutido.”

A ideia é baseada em impasses cotidianos. Diariamente, pessoas trans sofrem nas mais diversas esferas e em temas relacionados a seus direitos. No entanto, as tensões não param por aí. Segundo Dodi, há uma cobrança pelo simples posicionamento dos e das trans na sociedade, algo que o espetáculo tenta mostrar através de uma filosofia construtiva — levantando questões e elaborando respostas com os espectadores.
O título da peça vem do romance O Alienista, de Machado de Assis, e trata de um momento de virada, no qual há uma cegueira generalizada que induz tudo aquilo que é diferente a uma anormalidade. Na obra, a metáfora é tomada como forma de criticar a patologização das transgeneridades pelo Estado, responsável por promover um controle biopolítico do corpo trans cegamente, a partir de uma narrativa hegemônica do chamado “processo transexualizador”, segundo Dodi.
“É importante abordar o problema junto às provocações, mas sem trazer soluções. Apenas dessa maneira aqueles que assistem à peça podem nos ajudar a refletir acerca do tema”, diz Dodi. “Tal assunto não deve ser um enfado somente às pessoas trans. Nós militamos e tomamos muitas outras ações, entretanto, é preciso a mobilização de todos para transformarmos a transfobia.”

O espetáculo como objeto de pesquisa

Grande parte do elenco é formada por egressos do curso de Artes Cênicas da USP – Foto: Thaís Barbosa/Divulgação

A Demência dos Touros chega também ao campo acadêmico. Formada em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Dodi Leal atualmente cursa seu doutorado no Instituto de Psicologia, também da USP. Aproveitando-se de um “olhar teatral”, a dramaturga analisa formas de leitura da performatividade transgênera na peça. Por meio de entrevistas com espectadores, a doutoranda consegue elaborar hipóteses baseadas na recepção cultural daqueles que assistem ao espetáculo em relação aos trans.
Tal pesquisa é pioneira nos estudos de transgeneridade não sendo através de alunos cisgêneros, como era de costume. Em 83 anos de história, a Universidade de São Paulo formou apenas uma doutora transgênera — Daniela da Silva Prado se doutorou em Letras pela FFLCH em 2011, e Dodi Leal será a segunda, sendo a primeira delas pelo Instituto de Psicologia. Sua tese será defendida em março de 2018.
“O fato de estar acontecendo um doutorado sobre transgeneridade, envolvendo a questão teatral e ainda elaborado por uma mulher trans, é algo muito forte, muito relevante. É uma honra ter este espaço, mas também é necessário refletir sobre esse sacrifício: quantos e quantas não ficaram no caminho sem conseguir concluir seus estudos?”, completa Dodi.

A peça A Demência dos Touros acontece às quartas e quintas-feiras, às 21h, até o dia 6 de julho, no Teatro Pequeno Ato (rua Doutor Teodoro Baima, 78, Vila Buarque, São Paulo). Com bilheteria aberta uma hora antes do espetáculo, os ingressos custam R$ 40,00 (R$ 20,00 meia-entrada). Classificação indicativa: 16 anos. Mais informações: (11) 99642-8350.


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