Editora da USP lança obra clássica de Antonio Candido

Em “Os Parceiros do Rio Bonito”, professor denuncia os efeitos da industrialização na cultura caipira

 23/02/2018 - Publicado há 6 anos
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A mãe, a filha, a casa e a galinha, uma das bases da dieta caipira – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

Um livro que expõe os modos de vida tradicionais dos caipiras paulistas, retrata as transformações em sua cultura promovidas pela expansão do capitalismo para o interior do Estado, registra as formas de resistência a essas mudanças e, no final, sugere maneiras de preservar a dignidade e a integridade desses cidadãos – entre elas, a implantação da reforma agrária.

Antonio Candido, aos 29 anos, quando começou a pesquisa de campo sobre o caipira do interior paulista – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

Assim pode ser resumido um clássico da sociologia brasileira, o livro Os Parceiros do Rio Bonito, escrito originalmente em 1954 como tese de doutorado de Antonio Candido (1918-2017), Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e o principal crítico literário da história do País. Atualmente em sua 11ª edição – desde que dada a público pela Editora José Olympio, em 1964 -, a obra foi recentemente lançada pela Editora da USP (Edusp), em parceria com a Ouro sobre Azul. É a primeira vez que a editora da Universidade publica a tese de Candido, um de seus mais ilustres docentes. “Talvez este trabalho ainda tenha algum interesse para os que acham que a reforma das condições de vida do homem brasileiro do campo não deve ser baseada apenas em enunciados políticos ou em investigações especializadamente econômicas e agronômicas, mas também no estudo da sua cultura e da sua sociedade”, escreve Candido no prefácio da obra.

Casa visitada por Candido no interior paulista – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

Iniciados em 1947, os estudos de Candido que deram origem ao livro se estenderam por sete anos, até 1954. Nesse período, ele trabalhou em áreas caracteristicamente caipiras do Estado, localizadas nos municípios de Piracicaba, Tietê, Porto Feliz, Conchas, Anhembi, Botucatu e Bofete. Neste último, Candido se demorou mais. Em Bofete – antes chamado Rio Bonito -, chegou a residir por duas vezes, num total de 60 dias, num acampamento rural. Ali teve contato com parceiros – trabalhadores rurais que cultivam terras de terceiros -, a quem dedica ternos agradecimentos no prefácio. “Homens da mais perfeita cortesia, capazes de se esquecerem de si mesmos em benefício do próximo, encarando com tolerância e simpatia as evoluções de um estranho, cuja honestidade de propósitos aceitaram, ou ao menos não discutiram, por polidez”, escreve. “Eram todos analfabetos, sendo alguns admiráveis pela acuidade da inteligência.”

Caderno de campo usado por Antonio Candido nas suas pesquisas sobre os caipiras paulistas – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

No livro, Candido descreve em minúcias os hábitos dos caipiras que observou em suas pesquisas de campo, como no parágrafo em que, no seu estilo preciso e elegante, resume um dia na vida de um parceiro: “O despertar é geralmente às 5 horas, seguido de pequena ablução, consistindo num pouco de água pelos olhos. Segue a primeira refeição e a ração de milho às criações. Parte-se então para o local de trabalho, raramente encostado à casa, quase sempre distante 200 a 1.000 metros (e mais). A faina encetada vai até o pôr do sol, resultando uma jornada de 12 horas no verão, de 10 horas no inverno, interrompida pela altura das 8h30 por meia hora, para almoço, e cerca de uma hora pelo meio-dia, para merenda e repouso. Chegado em casa, o trabalhador dá milho às criações, lava as mãos, o rosto, os pés e janta, das 19 horas em diante. Às 22 horas ninguém mais está desperto. e a maioria já se deitou pouco depois das 20 horas”.

Parceiros com quem Antonio Candido travou contato para sua pesquisa – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

É na terceira e última parte do livro que Candido analisa as mudanças na vida do caipira descritas nas partes anteriores. Ele lembra que a marcha da urbanização em São Paulo está ligada ao progresso industrial e à consequente abertura de mercados. Com isso, bens de consumo até então desconhecidos penetram nas áreas rurais. “Surgem assim, para o caipira, necessidades novas, que contribuem para criar ou intensificar os vínculos com a vida das cidades, destruindo a sua autonomia e ligando-o estreitamente ao ritmo da economia geral, isto é, da região, do Estado e do País, em contraste com a economia particular, centralizada pela vida de bairro e baseada na subsistência”, salienta Candido. “Ele compra cada vez mais; em consequência, precisa vender cada vez mais.”

Uma vez que os produtos industrializados têm geralmente uma variação de preço maior do que os produtos agrícolas que o caipira obtém com o seu trabalho, o resultado é que ele não consegue mais equilibrar o seu orçamento.

O caipira, sua casa, seu meio e seu meio de locomoção (1948) – Foto: Reprodução/livro Os Parceiros do Rio Bonito

“Hoje, a dimensão econômica avultou até desequilibrar a situação antiga”, descreve Candido. “A expansão do mercado capitalista não apenas força o caipira a multiplicar o esforço físico, mas tende a atrofiar as formas coletivas de organização do trabalho (mormente ajuda mútua), cortando as possibilidades de uma sociabilidade mais viva e de uma cultura harmônica. Entregue cada vez mais a si mesmo, o trabalhador é projetado do âmbito comunitário para a esfera de influência da economia regional, individualizando-se. Condição de eficácia e, portanto, sobrevivência, é a renúncia aos padrões anteriores e a aceitação plena do trabalho integral, isto é, trabalho com exclusão das atividades outrora florescentes e necessárias à integração adequada.” Candido acrescenta que o trabalhador que assim não faz precisa abandonar o campo pela cidade ou “mergulhar nas etapas mais acentuadas de desorganização, que conduzem à anomia”.

Candido é incisivo em suas conclusões. Ele descarta que os fenômenos descritos ao longo do livro possam ser encarados como expressões de uma cultura vivendo fases do seu desenvolvimento. Antes, devem ser vistos como relacionados à cultura das cidades, que “vai absorvendo as variedades culturais rústicas e desempenha cada vez mais o papel de cultura dominante, impondo as suas técnicas, padrões e valores”. Para o professor, o caipira vive uma “aventura frequentemente dramática”, em que os padrões mínimos de existência em que antes vivia se transformam em “padrões de miséria”. Segundo o professor, o caipira está entregue aos seus miseráveis recursos, adaptando-se penosamente a uma situação nova e vertiginosa de mudança por meio de técnicas materiais e sociais que tinham sido elaboradas para uma situação geral desaparecida. “Encarada desse ponto de vista, dentro do processo de urbanização e industrialização, a regressão adaptativa, possibilitada pela latência cultural, exprime uma situação da mais revoltante iniquidade.”

Dada a situação estudada no livro, Candido cita a questão da reforma agrária. “Sem planejamento racional, a urbanização do campo se processará cada vez mais como um vasto traumatismo cultural e social, em que a fome e a anomia continuarão a rondar o seu velho conhecido.”

Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, Editora da USP (Edusp) e Ouro sobre Azul, 336 páginas, R$ 54,00

 

 


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