D’Orsay é museu de desafios e inspirações

Elza Ajzenberg – ECA

 22/06/2016 - Publicado há 8 anos
O Musée d’Orsay visto dda passarela Léopold Sédar-Senghor sobre o Sena – Foto: Wikimedia Commons
O imponente Museu d’Orsay, visto da passarela Léopold Sédar-Senghor sobre o Sena, em Paris – Foto: Wikimedia Commons

Antes, a antiga estação de trem ou gare d’Orsay. Hoje, um grande museu, no qual está inserida importante trajetória da história da arte. Integram esse percurso obras de referência de várias vertentes estéticas, que envolvem o período de 1848 a 1914. Quais fontes inspiradoras assinalam o Musée d’Orsay? Inúmeras. A sua caminhada histórica guarda um denso contexto: a ideia de transformar o seu projeto original em espaço de excelência artística e de múltiplas metáforas criadas pelos artistas, proporcionando perspectivas e descobertas voltadas aos novos tempos e mudanças.

A complexidade histórica, em meados do século 19, envolve fatos com desdobramentos vitais. Em 1848, a proclamação da República provoca insurreição e combates des jornées de juin, com milhares de vítimas. Em novembro de 1848, emerge a Segunda República e sua Constituição. Os anos seguintes são acompanhados de conflitos e da subida ao poder de um governo imperial. As crises políticas e sociais prosseguem. As transformações determinam novos parâmetros. Paris passa por transformações urbanísticas. É atravessada por longas ruas e boulevards, depois da destruição de quarteirões antigos. A sua população dobra. Cinco estações novas são construídas. A infraestrutura é aperfeiçoada com extensões e canalizações de água e gás. Diversos parques e jardins, como os bosques de Vincennes e Boulogne, atingem um grande número de visitantes. Magazines são construídos. Paris é frequentada por estrangeiros: é un espectacle permanent!

Uma burguesia enriquecida destina parte de sua fortuna para aquisições de obras de arte. São organizadas coleções personalizadas e exposições. Acentuam-se os debates culturais. Registros desses acontecimentos inspiram criações e diversos movimentos artísticos do século 19, que atingem o século 20. São diversos movimentos que encontram grandes nomes artísticos e aquecem debates estéticos, tais como o Romantismo, o Realismo, o Simbolismo, o Impressionismo e o Pós-Impressionismo. Esses movimentos têm o Musée d’Orsay como referência.

Elza - Foto: Cecília Bastos
Elza Ajzenberg – Foto: Divulgação

No século 20, as transformações e desafios continuam, assim como trágicos conflitos que alcançam duas guerras mundiais. O espaço no qual está colocado o Musée d’Orsay assinala vários acontecimentos desse contexto. No século 19, o lugar da futura estação é ocupado por duas construções: a Caserne de Cavalerie e o Palácio d’Orsay – edificado entre 1810 e 1838 por Jean-Charles Bonnard (1765-1818) e, depois, por Jacques Lacornée (1779-1856). No seu percurso, conhece muitos destinos: Ministério do Tribunal de Contas e Conselho do Estado, entre outros. Durante a Comuna de 1871, o quarteirão é incendiado. Ao longo de 30 anos, os muros calcinados do Palácio d’Orsay testemunham os horrores da guerra civil.

Por ocasião da Exposição Universal de 1900, é inaugurada a Estação de Ferro d’Orsay. De 1900 a 1939, recebe, além de viajantes, manifestações políticas e várias comemorações. A partir de 1939, a estação serve aos arredores. Sua construção motiva várias ações, inspirando cenário de filme de Orson Welles (1915-1985). Em 1973, começa o processo de transformação da gare para museu, prevendo a demolição da construção antiga, cedendo lugar para um projeto moderno. Entretanto, o renovado interesse pelos monumentos históricos do século 19 incentiva a tomada de decisão. Em 1978, a gare torna-se um museu inserido na construção histórica. Em 1978, a decisão de Monumento Histórico é estabelecida. O Museu d’Orsay é inaugurado em 1986.

La gare est superbe et a l’air d’un Palais des Beaux-Arts”, escreve o poeta Edouard Detaille (1848-1912) em 1900, sobre a imponência da construção d’Orsay. Anos depois, essa profecia ou inspiração efetiva-se. A transformação de uma estação em museu foi obra dos arquitetos do grupo ACT-Architecture, Renaud Bardon, Pierre Colboc e Jean-Paul Philippon. O projeto selecionado, em 1979, prevê o respeito ao projeto arquitetônico original de Victor Laboux. A reinterpretação é realizada em função da nova vocação da construção. Três níveis são oferecidos para o visitante percorrer o museu: o térreo, com um percurso central e alas laterais, um nível intermediário, com terraços que introduzem as salas de exposição, e o andar superior, que se prolonga na parte mais elevada da construção. Na caminhada, o visitante depara-se com escadas rolantes; mirantes destinados a oferecer, do próprio interior do museu, a monumentalidade das intervenções efetuadas na antiga estação de trem. A admiração aumenta com a expressão do pós-moderno nas intervenções arquitetônicas. A construção torna-se um espetáculo singular.

La gare est superbe et a l’air d’un Palais des Beaux-Arts

O Orsay dispõe de amplos espaços que envolvem de modo particular o visitante: as obras de artistas muito importantes, as intervenções arquitetônicas e o entorno, com janelas que trazem a cidade para dentro do museu. A isso se acrescentam livrarias, ateliers, concertos, cafeterias e atividades lúdicas e educativas. Esse denso contexto provoca um novo olhar sobre os desafios de um museu como o Orsay a seus visitantes.

Entre as obras do fantástico acervo, as motivações reflexiva e estética oferecidas, o visitante tem acentuações de uma visão externa ao museu, como uma magnífica vista sobre o Sena e as Tulherias, disponível no terraço lateral. Ressaltam-se as motivações divididas entre a parte interna que o museu oferece e as conexões externas da cidade ao redor. Retoma-se em espaços museológicos, como o oferecido pelo Museu d’Orsay, o debate sobre a possibilidade de uma leitura intimista (ou não) da obra de arte. Essa polêmica pode ser ampliada quando associada a museus emergentes, com arquitetura e museografia cada vez mais espetaculares. Nesse ponto, voltando ao Orsay, evocam-se questões sobre as transformações dos museus e do “mundo que passa por grandes mudanças”. Ou ainda ter essas indagações como ocasião para rever, mais uma vez, a relação do visitante (ou do pesquisador) com a obra de arte?

É oportuno lembrar que o Orsay é um museu pluridisciplinar, que se forma a partir de obras de várias outras coleções. Possui obras procedentes do Museu do Louvre (obras da Segunda República) e do Museu Jeu de Paume, consagrado depois de 1947 ao Impressionismo. Constam também obras do Museu Nacional de Arte Moderna (instalado no Centro Georges Pompidou), com obras de artistas nascidos antes de 1870. Além dessas coleções, o Museu d’Orsay recebe coleções de pintura do Museu de Luxembourgo, que contém obras de salões e reflete o gosto de uma época da pintura histórica. Somam-se a essas obras outras que vão do Realismo ao Impressionismo. Essa trajetória não para. O museu mantém uma política de aquisição de obras, bem como de doações. Através dessa política, foram acrescidas ao acervo, por exemplo, em 1991, Retrato de Madame Cezanne; em 1997, Bailarinas, de Degas; e em 2002, Efeito do Vento, de Monet.

MuseeOrsay - Foto:
Vista interna do Museu d’Orsay – Foto: Wikimedia Commons

Os desafios e as renovações continuam nos anos seguintes. Entre 2009 e 2010, o museu empreende adequações museográficas de suas salas impressionistas, situadas no último pavimento. Readéqua obras e o conforto dos visitantes, melhorando a fluidez e a circulação, bem como a segurança. Cria espaços destinados a exposições temporárias.

Uma das fontes que mais inspiram atualmente a vivência do Museu d’Orsay é a abordagem da história da arte para as crianças. O foco é o de ampliar conhecimentos e a sensibilidade. As estratégias podem evocar temas como “A Viagem”, aguçando a imaginação através da exploração de “artistas viajantes” ou “viagens do artista”. Itens como esse são sistematizados e desenvolvidos junto a grupos de crianças e escolas. As reflexões e leituras são pluridisciplinares, envolvendo pintura, arquitetura, música, fotografia e outras áreas. A programação desenvolvida assinala: observações, confrontos, interrogações, visão crítica e processo criativo. Provoca a curiosidade e a reflexão sobre a vida do artista, buscando construir gosto estético e sensibilidade.

Essas atividades somam-se à trajetória histórica desse museu de referência mundial. Levam a contínuas reflexões sobre a concepção, sua gestão e corpo técnico-científico e educacional. Dinamiza denso acervo artístico em sintonia com tempos de mudança. Fomenta a necessidade de aperfeiçoar a sensibilidade estética, as suas novas vertentes e conexões com a obra de arte e a promoção humana.

 

Elza Ajzenberg é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) USP e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP e coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da ECA


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