Coleção reúne depoimentos inéditos de refugiados do nazismo

Maria Luiza Tucci Carneiro e Rachel Mizrahi lançam dois volumes de importante coleção sobre as vozes do Holocausto

 29/01/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 01/02/2018 as 13:20
Por
Foto: Acervo Nacional / RJ e Arqshoah-LEER / USP

.
As pesquisadoras do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da USP Maria Luiza Tucci Carneiro e Rachel Mizrahi coordenam a produção de uma coleção de dez volumes intitulada Vozes do Holocausto – Histórias de vida: Refugiados do nazifascismo e sobreviventes da Shoah (Brasil 1933-2017). A coleção, publicada pela editora Maayanot, trará mais de 300 testemunhos de vítimas remanescentes do nazismo e do Holocausto que se refugiaram no Brasil. Os dois primeiros volumes, com 27 testemunhos, foram lançados em dezembro de 2017 e os demais serão publicados nos próximos três anos. Além de depoimentos, o leitor poderá encontrar fotos e documentos pessoais dos sobreviventes do maior genocídio da história da humanidade, ocorrido no século XX.

O projeto teve início em 1988, após Maria Luiza ter publicado o livro O antissemitismo na Era Vargas – fantasmas de uma geração (1930-1945), quando passou a receber muitas cartas de refugiados judeus (ou de familiares) que haviam vindo para o Brasil. Naquele ano, começou a realizar entrevistas com as pessoas que a procuraram para dar testemunhos, porque se identificavam como personagens daquela história marcada pela intolerância. Uma dessas histórias, que impulsionou a realização da coleção, foi a do casal alemão Max e Mathilde Maier, que ajudou a salvar judeus até 1938, falsificando documentos para os judeus que tentavam fugir das perseguições antissemitas empreendidas pelo Terceiro Reich. A professora, que  entrevistou Mathilde Maier, radicada desde 1938 em Rolândia, no norte do Paraná, conta que tal experiência “mostrou que esses refugiados, assim como os sobreviventes do Holocausto, poderiam contribuir com informações que dificilmente encontraríamos em documentos escritos, sob a guarda dos arquivos oficiais”.

A coleção, publicada pela editora Maayanot, trará cerca de 300 testemunhos gravados em vídeo e áudio pela equipe Arqshoah, que, em 2017, atuou com 15 pesquisadores bolsistas, patrocinado s por empresários. Os dois primeiros volumes já foram lançados e outros oito ainda serão publicados nos próximos anos.

Em 2001, o número de entrevistados se amplia com o envolvimento de Rachel, que possuía um acervo considerável de entrevistas com judeus imigrantes do Oriente Médio. Segundo Maria Luiza, Rachel tinha em seu poder “um trabalho de história oral magnífico”. Considerando as experiências anteriores, decidiram criar um arquivo virtual sobre o Holocausto e antissemitismo, disponibilizando-o para consulta pública, ao mesmo tempo em que iam reconstituindo outras trajetórias de vida. Foi esse trabalho que originou o Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah), coordenado por Maria Luiza e considerado o “embrião das pesquisas” para a concepção da coleção. Tanto o projeto Arqshoah como a coleção Vozes do Holocausto têm como foco a trajetória daqueles que optaram pelo Brasil como comunidade de destino.

As pesquisas de documentos, imagens e relatos serviram de ferramentas para reconstituir as histórias de vida de mais de 300 refugiados e sobreviventes do Holocausto – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

.
Organização e relatos

Os volumes possuem uma estrutura fixa, na qual os testemunhos são divididos em basicamente três partes, sendo elas agrupadas de acordo com a trajetória dos entrevistados. A primeira, “Refugiados e Sobreviventes”, traz os testemunhos agrupados por nacionalidades, com ênfase nos testemunhos daqueles que “buscavam um lugar de refúgio” e daqueles que “saíram de um campo de concentração ou de um gueto, em busca de uma nova comunidade de abrigo”. A segunda parte homenageia os “Justos e Salvadores” — os que se mobilizaram para ajudar a salvar judeus perseguidos pelo nazifascismo. E a terceira, Movimentos de Resistência, aglutina testemunhos de judeus envolvidos em guerrilhas (partisans) que lutavam contra a dominação nos territórios europeus ocupados pelos nazistas.

O partisan Yehiel Chil Grynszpan, líder de um grupo de resistência ao nazismo na Polônia ocupada – Foto: Acervo Nacional / RJ e Arqshoah-LEER / USP

Um desses testemunhos é o de Augusta Grynszpan, viúva do líder partisan Yehiel Grynszpan, que, junto aos seus dois filhos, Mário Grynszpan e Célia Szwarc, concedeu entrevista às professoras Rachel e Blima Lorber. Polonês nascido na cidade de Sosnowica em 1916 e falecido no Rio de Janeiro em 1998, Yehiel (ou Chil, como era conhecido) se tornou partisan após perder mãe, irmã e três sobrinhos pelas mãos dos nazistas, refugiando-se nas florestas de Parczew (Polônia). Possuindo formação militar, comandou um grupo de partisans judeus entre 1942 e 1944. A rígida disciplina militar que Chil implantou no grupo fez com que sua guerrilha aumentasse de 50 para mais de 200 membros — muitos deles atraídos pelo sucesso do grupo em combates contra o inimigo alemão. Após a guerra, sofreu um atentado à bomba e, acatando o conselho de um amigo, partiu para o Brasil em 1948.

Maria Luiza enfatiza que a coleção serve como uma fonte de informações inéditas para a reconstituição do legado cultural herdado dos refugiados e dos sobreviventes do Holocausto radicados no Brasil, assim como para a história da política brasileira.

.

História de vida do partisan Yehiel Chil Grynszpan, disponível no site do Arqshoah e publicada no primeiro volume da coleção Vozes do Holocausto – Foto: Reprodução Arqshoah-LEER / USP

.

Os relatos contidos na coleção, segundo a pesquisadora Maria Luiza, minimizam a “distorção histórica que persistiu na historiografia brasileira até os anos 1980: a de que o Brasil era uma democracia racial e que recebia os imigrantes de braços abertos”. Ela comenta que as histórias pessoais publicadas na coleção reforçam que os judeus “tiveram grande dificuldade junto às missões diplomáticas brasileiras para conseguir vistos, alguns deles tendo que comprá-los, pagando com joias ou com o pouco dinheiro que tinham”. No Brasil, destaca Maria Luiza, eles receberam apoio imediato da comunidade judaica e não do governo brasileiro, que, até 1949, manteve circulares secretas dificultando a emissão de vistos para os sobreviventes do Holocausto. Dezenas deles usaram falsos atestados de batismo, ingressando no Brasil como católicos. Na Congregação Israelita de São Paulo, os refugiados recebiam a reconversão ao judaísmo, alem de apoio financeiro e educacional para recomeçarem suas vidas em liberdade..

A coleção está sendo produzida por uma equipe coordenada pelas pesquisadoras Maria Luiza Tucci Carneiro (foto e Rachel Mizrahi – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

.
Reforçando que o xenofobismo continua muito presente no mundo, em “discursos nacionalistas”, Maria Luiza aponta que a coleção serve como uma fonte de informações inéditas para a cultura e para a história da política brasileira. “A experiência do genocídio praticado pelos nazifascistas, da postura do governo brasileiro diante da questão dos refugiados, do antissemitismo e da indiferença pelos direitos humanos pode ajudar a encontrar caminhos, pensar ações e buscar soluções humanitárias para a situação vivenciada hoje pelos refugiados na Europa, que denuncia as fragilidades das democracias no mundo atual.”
.

Volumes 1 e 2 da coleção Vozes do Holocausto, com as lembranças de refugiados e sobreviventes do Holocausto que buscaram abrigo no Brasil – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
.
Os dois primeiros volumes da coleção Vozes do Holocausto – Histórias de vida: Refugiados do nazifascismo e sobreviventes da Shoah (Brasil 1933-2017) podem ser adquiridos no site da editora Maayanot. Mais informações, contato@maayanot.com.br.

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.