“3%” – a primeira série brasileira da Netflix nasceu na USP

Escrita por estudantes da ECA, história discute temas como meritocracia e desigualdade em Brasil pós-apocalíptico

 18/01/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 23/01/2018 as 9:20
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Cena da série 3%, da Netflix – Foto: Divulgação/Netflix
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Entre os mais de 130 mil candidatos que se inscreveram na Fuvest em 2017, menos de 7% conseguirão a tão sonhada vaga na USP. Na primeira série brasileira disponível na principal plataforma de streaming do mundo, a Netflix, apenas 3% dos jovens inscritos no chamado “Processo” alcançam o paradisíaco “Maralto”.

Apesar de situarem-se em universos totalmente distintos, Fuvest e a série 3% têm um forte laço em comum, além da aparente meritocracia: os criadores da distopia passaram pelo maior vestibular do País e o conceberam enquanto estudavam audiovisual na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

É o caso de Jotagá Crema (ele concedeu esta entrevista por telefone), que dirigiu e escreveu parte dos oito episódios da primeira temporada da série na Netflix. O jovem diretor e roteirista se formou na ECA em 2011, mesmo ano em que o primeiro piloto de 3% foi lançado no YouTube, em formato de websérie.
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 Segundo o ex-aluno da USP, a inspiração para a história veio de 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, livros que Pedro Aguilera — colega de sala de Crema e criador de 3% — acabara de ler, em meados de 2009.

Juntamente com Aguilera e mais duas estudantes do audiovisual, Daina Giannecchini e Dani Libardi, eles dirigiram a primeira versão de 3% para um edital do Ministério da Cultura, o FICTV/Mais Cultura, voltado para o público jovem das classes C, D e E. Apesar de não ter vencido o edital, a websérie conquistou fãs com o lançamento na internet, dando força para que o projeto continuasse.

A despeito da boa repercussão, ele não conseguiu deslanchar em um primeiro momento e foram várias as recusas para a produção da série completa. Para Crema, a dificuldade se relaciona com o momento do audiovisual brasileiro na época. “(Nós estávamos em um período) em que era bem mais difícil fazer um projeto de série, porque não tinha, por exemplo, a Lei do Cabo, não tinha o Fundo Setorial do Audiovisual, não havia esses mecanismos”, explica.

Com a dificuldade em emplacar o projeto, eles investiram em uma estratégia que Jotagá Crema chama de “marketing de guerrilha”, divulgando o piloto em sites, jornais, páginas do Facebook e até mesmos em fóruns da internet. Investiram também no público estrangeiro, adicionando legendas em inglês e divulgando-o em sites de outros países.

E foi dessa forma que 3% alcançou Erick Barmack, vice-presidente de conteúdo original da Netflix.
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Foto: Divulgação/Netflix
Foto: Divulgação/Netflix

Jotagá Crema - Foto: Reprodução/LinkedinJotagá Crema – Foto: Reprodução/Linkedin

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Pedro Aguilera –
Foto: Divulgação/Netflix

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Repercussão

3%, produzida pela Boutique Filmes, estreou no dia 25 de novembro, última sexta-feira do mês em 2016. Apesar da plataforma de streaming não divulgar os dados de público de nenhum de seus conteúdos, a série brasileira agradou à Netflix. A despeito das críticas negativas na imprensa nacional — e boas críticas na mídia internacional, vale ressaltar —, 3% foi renovada no dia 5 de dezembro, apenas dez dias após o lançamento.

A menos de dois meses no ar, agradou também os públicos estrangeiro — apesar da barreira da língua, de certa forma desmistificada com o sucesso de Narcos — e brasileiro: a página oficial já ultrapassou 300 mil curtidas no Facebook, e as duas principais páginas de fãs, ambas chamadas “3% da depressão”, já alcançam 140 e 85 mil curtidas.

A principal camada que 3% atinge é o público jovem. A explicação para esse direcionamento pode estar nas inspirações e na vivência que Aguilera e os demais envolvidos no projeto tinham à época da concepção da série. No quarto ano da faculdade, os então estudantes inseriram na criação do “Processo” suas angústias passadas e futuras. “O ‘Processo’ do 3% é legal porque instiga muito os jovens ao trazer essa múltipla identificação, tanto pelo vestibular quanto pelo crescimento para a vida adulta e a entrada no mercado de trabalho. E aí ganha várias dimensões, por isso é tão intenso”, aponta Crema.

Série

A primeira temporada de 3% é focada no “Processo” do ano 104 e em alguns de seus candidatos, como Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Rafael (Rodolfo Valente) e Joana (Vaneza Oliveira). Apesar dos primeiros episódios da série não explicarem o que causou a devastação do planeta, o cenário remonta aos filmes pós-apocalípticos, onde a miséria é absoluta e as condições de vida sub-humanas. Ao menos para 97% da população.

Foto: Divulgação/Netflix
Foto: Divulgação/Netflix

Na série, aos 20 anos, todo habitante do “Continente”, localizado em algum ponto da Amazônia Subequatorial, tem direito a passar por uma série de provas que testam os seus limites físicos e psicológicos. Ao fim, apenas três de cada cem participantes são aprovados, conquistando o direito de entrar no “Maralto”, onde há abundância e boas condições de vida.

“Você é o criador do seu próprio mérito” é a frase que rege o “Processo” e é insistentemente repetida por Ezequiel, que o chefia. O personagem de João Miguel é a síntese da crença na meritocracia, ainda que a falta de equidade mesmo entre os habitantes da miséria torne-a ambígua e, no mínimo, contraditória.

Há um esforço dos roteiristas e diretores da série, porém, para não tornar tanto “Processo” como personagens uma simples disputa entre bem e mal com o reinado do maniqueísmo. “A gente quis criar personagens tridimensionais, com várias camadas, vários conflitos, inclusive éticos e morais. Nós aprofundamos muito os personagens, criamos essas contradições e é muito legal, pois isso gera muito interesse, deixa os personagens mais humanos e as curvas deles mais surpreendentes. Foi muito legal de acompanhar como as pessoas reagem às viradas na série”, explica Crema.

Foto: Divulgação/Netflix
Foto: Divulgação/Netflix

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ECA

Apesar da direção geral da série ser de César Charlone (indicado ao Oscar de Melhor Fotografia por Cidade de Deus), boa parte da equipe de 3% passou pela Escola de Comunicações e Artes da USP, incluindo os montadores e outros profissionais. Além de Aguilera, Crema, Daina Giannecchini e Dani Libardi, outros estudantes do audiovisual da ECA na década passada, como Cássio Koshikumo, Denis Nielsen e Ivan Nakamura também dirigiram e participaram da criação do roteiro da série.

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Dani Libardi - Foto: Divulgação/Doda Ferrari
Dani Libardi – Foto: Divulgação/Doda Ferrari

 

20170118_3porcento_daina_giannecchiniDaina Giannecchini –
Foto: Divulgação/Facebook

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Para Jotagá Crema, a passagem pela ECA e pela Escola Politécnica foram fundamentais para dar a base de criação e raciocínio que ajudou no sucesso de 3%. “De certa forma, o Curso do Audiovisual serviu para abrir a nossa mente para pensar o audiovisual. Ainda mais em uma área que muda tanto, está em mudança constante com o digital, com as novas linguagens, novas formas de divulgação. Mas o núcleo principal, que é a linguagem cinematográfica, o curso é muito competente em fornecer e as pessoas com quem eu estudei são as pessoas com quem eu estou trabalhando hoje em dia”, aponta.

Netflix e Brasil

Maior produtora de conteúdo original em 2016 (43 títulos), a Netflix tem no Brasil um de seus mais fiéis públicos. A estreia de 3% foi a porta de entrada para a plataforma no País, mas a gigante do streaming não pretende parar por aí. A rede anunciou em agosto o primeiro longa-metragem original brasileiro, intitulado O Matador e desde abril o diretor José Padilha (Tropa de Elite e Narcos) está trabalhando em uma série sobre a Operação Lava Jato para a Netflix.

Além disso, o público brasileiro terá ao menos mais uma temporada de 3% nos próximos meses. Crema não dá grandes detalhes sobre a trama, tampouco concede uma previsão sobre o lançamento, mas promete que a equipe da distopia está trabalhando duro para manter as qualidades da série e corrigir as lacunas que ficaram nos primeiros episódios.

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Foto: Divulgação/Netflix

Foto: Divulgação/Netflix

 

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