Política, ciência ou má-fé – o ataque policial à cracolândia

Nuno M. M. S. Coelho é professor de Ética e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP

 14/06/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 05/07/2017 as 21:14

Nuno M. M. S. Coelho – Foto: Reprodução / IPTV

O ataque policial feito pelo Prefeito Doria e pelo Governador Alckmin contra a cracolândia, em maio de 2017, acompanhado pela Globo no Fantástico, mas não por agentes da assistência social nem da saúde, desperta o debate sobre o compromisso que uma política pública deve ter com os conhecimentos científicos disponíveis.

A pergunta é feita pelas pessoas que estudam as políticas públicas com base em evidências, e interessa a todos nós: um governo pode adotar uma medida ou uma política com base em pressupostos científicos sabidamente falsos?

Uma política pública é um conjunto articulado de medidas voltadas a atingir algum interesse público. Ela visa o bem comum, a partir de ações, instituições e normas que o viabilizem.

A pergunta posta, portanto, quer saber se é lícito ao administrador utilizar dinheiro público e influir na liberdade das pessoas, por meio de ações que, de acordo com amplo consenso científico, jamais atingirão a finalidade pública que almejam.

No caso do ataque policial à cracolândia, não há nenhuma dúvida de que atitudes repressivas desta natureza não têm absolutamente nenhuma eficácia na diminuição do comércio, da dependência e ou dos efeitos psíquicos, físicos, sociais e econômicos do abuso de drogas.

A grande mídia repercute muitos dos estudos acerca disto, mostrando que em todos os meios científicos dedicados ao problema (médicos, psicólogos, assistentes sociais, educadores, especialistas em segurança pública, juristas…) é simplesmente óbvio que “atacar a cracolândia” não só é inútil, como contraproducente. Além de não ajudar, atrapalha, aumentando o problema.

O ataque policial feito pelo Prefeito Doria e pelo Governador Alckmin contra a cracolândia, em maio de 2017, acompanhado pela Globo no Fantástico, mas não por agentes da assistência social nem da saúde, desperta o debate sobre o compromisso que uma política pública deve ter com os conhecimentos científicos disponíveis

Como se explica que o poder público adote medida desta natureza? Há algumas possibilidades para explicar isto. De um lado, é possível que o Prefeito e o Governador de São Paulo tenham atacado a cracolândia com base em informações científicas que eles consideram credíveis. Neste caso, é razoável pedir-lhes que apresentem os dados científicos que – desconhecidos pela mídia e pela comunidade científica – amparam a sua decisão.

É possível, por outro lado, que eles tenham decidido atacar a cracolândia a partir da total desconsideração do que a ciência diz sobre o assunto, substituindo o conhecimento dos especialistas por suas próprias convicções pessoais. Neste caso, torna-se urgente decidirmos sobre a possibilidade de os políticos desprezarem as conclusões a que a ciência chegou a partir da discussão crítica de dados metódica e transparentemente coletados, observados e analisados – substituindo-as pelas crenças e preconceitos do governante ou do senso comum.

Mas há uma terceira possibilidade. Pode acontecer de o político tomar uma decisão, apesar de saber que se trata de algo inútil ou contraproducente. Neste caso, ele não atua com base em conhecimentos científicos que não mostram e discutem, nem tampouco os substitui por seus próprios preconceitos. O governante atua consciente de tratar-se de medida inócua, tal como o denuncia abundantemente a ciência – mas ainda assim insiste na sua adoção, simplesmente porque seu objetivo real não é o objetivo declarado, mas outro.

Em todos os casos, a política e o direito já dispõem de instrumentos (embora tímidos) para assegurar que as políticas públicas abandonem seus fundamentos voluntaristas – ainda que se trate da imposição da vontade de um político eleito – quando estes fundamentos e pressupostos forem fortemente repelidos pela ciência.

Só é possível evitar que o político decida com base em critérios pseudocientíficos, substitua a evidência científica por suas opiniões pessoais ou pelo senso comum, ou aja de má-fé (em ações que sabe contraproducentes para o bem comum, mas que são úteis para ele, dados os seus próprios interesses políticos) – pelo fortalecimento consistente e urgente dos procedimentos de verificação e crítica pública das decisões, tornando obrigatórias audiências, relatórios e outros mecanismos dialógicos que provem atenção aos padrões científicos disponíveis e levem a sério as divergências e o debate científico acerca do tema. Seria no mínimo exigível que, num sistema decisório democrático em que se pudessem levantar questionamentos desta natureza, fosse requerido que a autoridade comprovasse ao menos que não despreza integral e solenemente o conhecimento científico existente.

Do ponto de vista jurídico, cabe exercer e desenvolver as medidas judiciais que impeçam ações administrativas evidentemente inaptas para atingir os objetivos do bem comum, e responsabilizar, por danos morais e materiais, a Administração e os agentes públicos responsáveis por iniciativas que custam dinheiro público e que atingem pessoas, embora sejam previsivelmente ineficazes ou contraproducentes.

Não se trata de submeter a política à ciência. E é verdade que a ciência também é o lugar de uma disputa infinita sobre a verdade e os fatos. Mas ainda assim é justo exigir um mínimo de sensatez e controle social nas políticas públicas, impedindo ações administrativas totalmente desarrazoadas que prejudicam a coletividade, tornando as coisas piores

Não se trata de submeter a política à ciência. E é verdade que a ciência também é o lugar de uma disputa infinita sobre a verdade e os fatos. Mas ainda assim é justo exigir um mínimo de sensatez e controle social nas políticas públicas, impedindo ações administrativas totalmente desarrazoadas que prejudicam a coletividade, tornando as coisas piores.

O ataque policial à cracolândia está a serviço do bem comum, ou é mera propaganda política? Ao lado das circunstâncias midiáticas que envolveram o ataque (cuja execução foi planejada de sorte a garantir sua veiculação no horário mais nobre da televisão brasileira), a total inaptidão técnica e científica da medida, sabidamente contraproducente, indicia fortemente que ela não visa verdadeiramente o interesse público, mas é simples apropriação de recursos públicos para propaganda, contemplando apenas os interesses privados dos governantes. Em afronta ao regime republicano e democrático, isto exige responsabilização política e jurídica dos seus autores.

PS: o fato de o ataque à cracolândia ter alcançado, segundo pesquisa de opinião, a aprovação de 80% dos paulistanos, é prova de que a medida tem o fim de enfrentar o problema da drogadição e de seus efeitos – ou de que foi muito bem-sucedida enquanto ação de propaganda?

 


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