Discurso moral prejudica adesão a tratamento de população em situação de rua com tuberculose

Sensação de perda de liberdade ao ser internado e moralidade dos profissionais de saúde são fatores para o abandono do tratamento da tuberculose por pessoas em situação de rua

 25/05/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 30/05/2016 as 16:58
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Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Uma das chamadas “cracolândias” na cidade de São Paulo. População que vive nas ruas, especialmente a dependente de drogas, é mais susceptível a contrair a doença e a não seguir o tratamento até o final – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O jornalista Liandro Lindner, de 40 anos, nunca chegou a conhecer o avô paterno, morto na década de 1940, quando seu pai tinha apenas dois anos. A real causa da morte, porém, ele soube há pouco tempo: tuberculose. Na época, a mortalidade e o contágio elevados justificavam o estigma da doença, traduzido nos eufemismos da família para contar a história: “foi pneumonia”, ou “morreu de pontada”, na linguagem do interior gaúcho.

Hoje a tuberculose ainda é revestida por preconceitos, mas um grupo em especial chamou a atenção de Lindner: pessoas em situação de rua. Sobre elas a moralidade dos próprios profissionais de saúde parece ter especial peso na elevada taxa de abandono do tratamento, correspondendo ao dobro da falta de adesão verificada na população em geral com tuberculose.

Instigado a entender este processo, ele foi a campo durante um ano, relatando sua experiência e reflexões na tese de doutorado “Dando uma moral: Moralidades, prazeres e poderes no caminho da cura da tuberculose na população em situação de rua do município de São Paulo”, defendida na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

Foto: Wikimedia Commons
Radiografia de paciente com tuberculose pulmonar avançada: doença é a segunda causa de morte por moléstias infecciosas no mundo, perdendo apenas para a Aids – Foto: Wikimedia Commons

Lindner conta que o acesso da pessoa em situação de rua com tuberculose ao tratamento se dá por duas vias: os consultórios de rua, envolvendo uma equipe multidisciplinar que vai até os pacientes onde estiverem; ou a hospitalização, no caso de São Paulo feita principalmente em um hospital especializado em Campos do Jordão.

Como constatado pelo pesquisador, principalmente no ambiente hospitalar, parte do problema está relacionada à sensação de perda de liberdade que os pacientes vivem ao serem internados. “A ideia de cura dos pacientes era diferente da dos profissionais. O primeiros queriam vitalidade física para poderem voltar ao seu espaço e hábitos de antes. Já da parte dos profissionais, havia a meta de que além de terminar o tratamento, os pacientes vivessem uma transformação, com forte conotação moral: ‘agora você precisa arrumar um emprego, sair da rua, parar de beber…’ ’”, explica Lindner.

Nos consultórios de rua, a presença de agentes de saúde que já viveram na mesma situação ajudava no entendimento mútuo, minimizando o problema. Ainda assim, os agentes falavam da perspectiva de quem “venceu”, pois saiu da rua, e se julgavam aptos a dizer o que era melhor aos que ainda estavam nela. Ele ressalta, porém, que esta não era uma postura consciente, e que identificava nos profissionais uma genuína vontade de atuar na melhoria das condições dos pacientes.

20160523_01_tuberculosePara o jornalista, entretanto, fica claro que as moralidades e visões sobre o processo de cura de pacientes e profissionais são bem distintas, e isso deveria ser levado em conta ao se elaborar políticas públicas de saúde. Como exemplo, ele cita o conceito de redução de danos. Para a população com HIV e dependentes de drogas, já há iniciativas neste sentido, mas para a tuberculose ainda não existe nenhuma: “o discurso é o de que eles devem parar de beber e usar drogas, sem considerar que isso nem sempre será fácil ou possível”. Vale lembrar que o álcool e outras drogas, a despeito de seus malefícios, não anulam o efeito do tratamento.

A questão das travestis internadas também reflete bem a necessidade de uma revisão crítica das relações de poder nos serviços de saúde. “No primeiro momento, elas não eram nem chamadas pelo nome social, e se começavam a ter um relacionamento no hospital, isso incomodava, gerando um tumulto à ordem estabelecida”.

Outro ponto levantado por Lindner é o valor de cuidado e atenção atribuído ao tratamento pelos pacientes. “Ao serem totalmente curados, eles voltariam a não ter mais atenção nem quem os escutassem. Então poderia ser vantajoso, sob este ponto de vista, abandonar o tratamento e recomeçar mais de uma vez”, pondera.

Além disso, as relações de poder eram mais complexas do que aparentavam: “os pacientes também exerciam algum grau de poder sobre os profissionais, e jogavam com o desejo que identificavam neles de que terminassem o tratamento, tentando obter vantagem disso”, relata.

A pesquisa de Liandro Lindner na FSP teve a orientação do professor Rubens Adorno.

Mais informações: email liandro.lindner@gmail.com


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