“Bom Senso Futebol Clube”: grupos de interesses trazem avanços e retrocessos ao futebol brasileiro

Atuação de jogadores mudou relações trabalhistas e levou a Lei de Responsabilidade Fiscal para clubes, porém dirigentes conseguiram manter estrutura de poder nas federações e CBF

 19/08/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 24/08/2016 as 17:46
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“Cartolas” (dirigentes esportivos), grupos mídia e os próprios atletas são protagonistas das disputas políticas envolvendo o futebol brasileiro – Foto: Thinkstock/Fuse via Fondospédia

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A atuação de grupos de interesse que representam jogadores de futebol, dirigentes esportivos e meios de comunicação teve grande influência nas decisões políticas relacionadas ao esporte desde meados da década de 1980, período considerado como de modernização do futebol no Brasil, constata pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O estudo do pesquisador Thiago Belmar mostra que alguns grupos conseguiram avanços, como na mobilização de jogadores e da imprensa pelo fim do passe, mudando as relações trabalhistas entre clubes e atletas, e mais recentemente com a aprovação de medidas de responsabilidade fiscal dos clubes, defendida pelo movimento de atletas Bom Senso Futebol Clube. Entretanto, também houve retrocessos, devido à ação de um grupo de dirigentes e veículos de comunicação, que impediram mudanças nas estruturas de poder de clubes, federações e CBF.

Os principais grupos que atuaram no período foram a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), as federações estaduais de futebol, veículos de comunicação e os jogadores de futebol. “Um importante ator começa a ganhar espaço durante o período analisado, que é o empresário do futebol, mas não foi considerado pela pesquisa porque não foram encontradas referências sobre a atuação desse ator como grupo de interesse nas decisões políticas”, afirma o pesquisador. “Mas não há como negar que os empresários acabaram se beneficiando muito com a liberdade que os atletas receberam em relação aos clubes, após a Lei Pelé, aprovada em 1998.”

O Bom Senso FC e capitães da Série A promoveram uma nova jornada de protestos na rodada final do Campeonato Brasileiro 2015 – Foto: Bom Senso FC/Facebook

A convergência de interesses entre alguns clubes, as federações e a CBF obteve uma derrota significativa no caso das relações de trabalho, já que o passe foi extinto e os jogadores não mais precisariam ficar ligados por muito tempo, mesmo a contragosto, aos clubes. “O grupo conseguiu amenizar o impacto de certas medidas, como no caso da cláusula penal, que fazia com que os clubes pudessem receber indenizações pelas transferências de atletas”, afirma Belmar. “Por outro lado, os jogadores e os meios de comunicação – que, em grande parte, apoiavam a causa dos atletas – tiveram sucesso definitivo, principalmente pela principal questão que os envolvia ter sofrido uma mudança significativa, com o fim do passe, que foi uma decisão final do poder público.”

Na questão da administração dos clubes, a convergência de interesses teve certo sucesso. “As decisões não provocaram mudanças que os afetassem, não alterando as estruturas de poder das entidades, e concedendo benefícios fiscais e parcelamento de dívidas, apesar de terem que lidar com alguns bloqueios de receitas e divulgação de balanços”, afirma o pesquisador. O estudo foi orientado pelo professor Wagner Pralon Mancuso, da FFLCH e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

Mídia e jogadores

Parte dos meios de comunicação, especialmente a Rede Globo, também teve certo sucesso, na medida em que apoiava essa convergência de grupos. “Interessa para ela, por uma questão de audiência, que os clubes se mantenham ativos, através da renegociação das suas dívidas”, observa Belmar. “Já os jogadores e outros meios de comunicação tiveram certo insucesso, já que as medidas, até então, não foram favoráveis às suas demandas, mas ainda estão em aberto, com possibilidade de se harmonizarem um pouco mais com tais demandas, com a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte, aprovada em 2015. Com a atual mudança de governo, ainda fica incerto o que ocorrerá. Mas a lei está aprovada.”

Bom Senso FC requisita oficialmente à CBF participação no Comitê de Reformas do Futebol Brasileiro
Bom Senso FC requisita oficialmente à CBF participação no Comitê de Reformas do Futebol Brasileiro – Foto: Bom Senso FC/Facebook

O surgimento e atuação do movimento Bom Senso FC, criado em 2013, merece destaque porque se tratou de uma rara mobilização por parte do grupo dos atletas de futebol. “De certa forma, ele quebra uma tradição de baixa mobilização ao tentar influenciar o poder público, participando de encontros e discussões com o Executivo e com o Legislativo, conseguindo a aprovação de medidas de responsabilidade fiscal dos clubes e garantias trabalhistas aos atletas”, ressalta o pesquisador. “No entanto, era um grupo pequeno, ainda que maior que o de costume, de atletas e representado por jogadores, pode-se dizer, pertencentes à elite do futebol brasileiro, talvez não conseguindo trazer tantos avanços para a maioria dos jogadores, que vivem de salários muito baixos e jogam, muitas vezes, apenas três meses do ano, devido ao calendário desorganizado da CBF e das federações estaduais, ficando boa parte do tempo sem emprego.”

Um grupo pequeno de atletas pertencentes à elite do futebol brasileiro talvez não tenha conseguido trazer tantos avanços para a maioria dos jogadores, que vivem de salários muito baixos e jogam, muitas vezes, apenas três meses do ano.

Embora os representantes do Bom Senso aleguem que o movimento não encerrou suas atividades, mas apenas sofreu uma reformulação, Belmar comenta que é visível a redução de sua atuação. O pesquisador aponta que isso pode ter acontecido por três hipóteses: o grupo de interesse estar satisfeito com os resultados obtidos, perder influência devido ao desgaste no processo político para aprovação de medidas, ou devido ao próprio poder político, no caso, o governo federal.

“O governo Dilma Rousseff sempre se mostrou disposto a ouvir o Bom Senso e atuar ao lado dos atletas, apertando o cerco, em termos fiscais e de responsabilidade financeira, aos clubes. No entanto, esse governo acabou enfrentando enormes dificuldades políticas, culminando hoje no processo avançado de impeachment da presidenta eleita, o que pode ter sido um elemento importante para que o Bom Senso tenha perdido força”, destaca Belmar. “O próprio governo interino nunca se mostrou muito ligado às questões que o Bom Senso reivindicava e não dá sinais de grandes avanços na área esportiva em geral. Portanto, essas três hipóteses podem explicar o momento atual do movimento”, opina.

Mais informações: email thiagobelmar@yahoo.com.br, com Thiago Belmar


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