Problemas na diferenciação entre bebê e mãe podem originar anorexia no futuro

A restrição alimentar aparece como uma tentativa do indivíduo de controlar presença e ausência do objeto, que, no caso, aparece na forma de comida

 02/09/2016 - Publicado há 8 anos
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Ilustração: Revista psico.usp

Muito além da busca pelo corpo ideal, a anorexia e a bulimia são patologias alimentares perigosas. Elas são encontradas com maior frequência em adolescentes e adultos, independentemente do grupo étnico, e a anorexia é dez vezes mais comum em mulheres do que em homens – os pacientes do sexo masculino representam entre 5% a 10% dos casos. Preocupante também é o índice de mortalidade dos transtornos: 12 vezes maior que o da população normal da mesma faixa etária e duas vezes maior do que pacientes portadores de outros problemas psiquiátricos.

Uma literatura mais recente propõe novos significados e desencadeamentos para essas patologias, apontando as semelhanças das relações que os pacientes anoréxicos constroem com pessoas e alimentos. Nessa forma de abordagem, o ponto de partida geralmente é o relacionamento estabelecido pelo paciente enquanto bebê com a figura materna. Utilizando-se dessas percepções, as psicólogas Maria Carolina Cerqueira César Garcia, em sua tese de doutorado, e Verónica Lara Wainsten, em sua dissertação de mestrado – ambas defendidas no Instituto de Psicologia (IP) da USP – se propuseram a pesquisar como esse relacionamento pode abrir espaço para o surgimento de patologias alimentares no futuro.

Cortando o cordão

O recém-nascido é um indivíduo frágil. É imaturo e inapto a realizar as tarefas para garantir sua sobrevivência, as quais são, portanto, assumidas pela figura materna. Essa relação de dependência gera no bebê um sentimento de unidade, pois ele se sente conectado à mãe, como se ela fosse uma extensão sua. A atuação da mãe que provê esse ego auxiliar do bebê recebe o termo “mãe suficientemente boa”, criado pelo psicanalista D. W. Winnicott.

Contudo, essa relação não perdurará para sempre. A mãe terá que mostrar ao bebê a realidade, e se portar como indivíduo separado dele, ou seja, descolar-se do bebê. “No início, não há mãe e bebê – pelo menos não para o bebê. Eles são uma unidade só”, relata Verónica. A pesquisadora ainda complementa explicando que “quando o bebê começa a perceber que a mãe é um outro diferenciado, que pode ir e não voltar, ele passa pela angústia da separação”. Visto isso, Carolina explica que, no momento da separação, é necessário que “o bebê consiga efetuar esse processo, que é sempre muito delicado e sujeito a grandes angústias”, com o intuito de não se sentir mais parte constituinte da mãe. Ela deixa claro que é preciso passar por essa fase “sem precisar recorrer, inconscientemente, a mecanismos que de alguma forma a burlariam”.

Outro teórico utilizado nessa abordagem é Didier Anzieu, que comenta a importância de se estruturar limites psíquicos bem estabelecidos. Esses limites seriam a distinção entre o eu e o outro, o dentro e o fora. Além disso, faz parte dos limites a percepção do ser como um todo, que ao mesmo tempo constitui seus limites com o externo e recebe influências e impactos do meio a partir de seus “furos” psíquicos, isto é, dos “caminhos” por onde as relações externas adentram o eu. Assim como Winnicott, Anzieu compreende que a separação mãe-bebê deve ocorrer de forma adequada para que as funções psíquicas se fortaleçam de maneira satisfatória. Utilizando-se desse reconhecido psicanalista, Carolina explica que, caso algum limite se constitua de forma errônea durante o “descolamento”, o psiquismo pode ser comprometido, ficando desprotegido e com limites indefinidos.

Verifica-se, então, que as patologias alimentares são desencadeamentos futuros de falhas que ocorreram no momento da constituição psíquica, a qual ocorre nas primeiras fases da vida. Essas falhas na formação acarretam dificuldades na diferenciação entre o eu e o externo, pois o indivíduo passou pelo descolamento mãe-bebê de forma ríspida. Isso, portanto, compromete a construção de fronteiras e limites do psiquismo. “Com fronteiras frágeis, temos o comprometimento da diferenciação dentro/fora, interno/externo, eu/fora do eu, corpo/psique. Dessa forma, o que se encontrará comprometida será a própria constituição do eu”, comenta Carolina.

Defesas perigosas

As marcas deixadas na constituição psíquica do indivíduo o acompanharão durante sua trajetória de vida, podendo ocasionar diferentes patologias. No caso das patologias alimentares, a dificuldade da separação mãe-bebê persiste durante os futuros relacionamentos desses indivíduos. Devido à ausência de limites psíquicos e uma fraca constituição do eu, o paciente anoréxico acaba por desenvolver uma série de defesas contra as relações de proximidade e contato.

A anorexia e a bulimia nada mais são do que mecanismos de defesa contra a invasão do objeto. A restrição alimentar aparece como uma tentativa de o indivíduo controlar a presença e ausência do objeto, que, no caso, se dá em forma de comida. “Poder escolher” quando haverá a ingestão de alimento ou não é uma tentativa de controle daquele que se sente ameaçado pelo abandono. Contudo, essa “proteção” à qual o paciente recorre é falha e perigosa. “É uma defesa muito radical, que pode levar ao óbito. Então, de fato houve uma falha muito grave na constituição subjetiva, senão a pessoa poderia lançar mão de recursos mais evoluídos”, aponta Verónica.

Embora a anorexia e bulimia consistam em defesas, elas se manifestam de formas diversas. Uma é a extrema falta; a outra, o excesso. “Se na anorexia há uma verdadeira sujeição à necessidade de controle, na bulimia temos a sujeição ao descontrole”, afirma Carolina.

Essas relações de falta e excesso parecem estar intimamente ligadas às características dos laços familiares que pacientes anoréxicos desenvolvem. Verónica, ao realizar a análise clínica que compôs sua dissertação, pôde notar essa relação: “a comida aparece como um elemento que une os membros da família, seja por uma atividade em comum ou pela falta dela”. Nas representações gráficas feitas pelas pacientes entrevistadas, foi unânime a menção à comida nas reuniões familiares, fosse como elemento presente ou como ausente.

Os vínculos afetivos são, por consequência, ameaças das quais pacientes com patologias alimentares tentam se proteger. Uma vez que a diferenciação do eu e do outro não foram feitas de forma adequada, qualquer possibilidade de separação pode ser vista como um perigo. “Não é como se o sujeito se separasse do outro, é como se estivesse perdendo uma parte de si mesmo”, exemplifica Verónica.

Portanto, qualquer relacionamento e, logo, qualquer iminência de separação, pode se tornar um processo sofrido. Isso porque, com a fragilidade do psiquismo, a dificuldade em lidar com separações e perdas, que são processos naturais da vida, compromete a elaboração do luto. Como o luto é a representação de uma perda, é necessário separar-se de forma saudável do objeto. Mas “se o eu e o objeto estão, na fantasia, fusionados, como o paciente vai elaborar um luto, uma perda?”, completa Verónica.

A culpa

Na relação mãe-bebê, um dos papéis maternos é garantir a possibilidade da instauração de um vazio e criar um ambiente propício para que a criança perceba o eu em relação ao outro. Conforme já dito, é nos primórdios da vida do indivíduo que a falha no processo de constituição psíquica pode acontecer. Contudo, é preciso ter cuidado ao tentar apontar um possível “culpado”, uma vez que a constituição psíquica é algo extremamente complexo. Verónica ressalta: “Nunca é culpa de ninguém. Mãe não tem culpa, é uma sucessão de falhas ambientais”. Vários fatores externos à realidade da mãe ou da família na qual o bebê está inserido podem resultar nesse quadro negativo. “Às vezes, a mãe não tem amparo. E, quando vamos ver, ela não estava psicologicamente disponível. Isso pode acontecer, não é má vontade”, completa.

Portanto, mesmo que se saiba quais são algumas das raízes das falhas que produzem as patologias alimentares, não é possível denominar um “responsável” ou, ainda, precisar o momento em que algo deu errado. O essencial é conhecer o funcionamento psíquico das pessoas acometidas e compreendê-lo.

Não é possível denominar um ‘responsável’ ou, ainda, precisar o momento em que algo deu errado. O essencial é conhecer o funcionamento psíquico das pessoas acometidas e compreendê-lo

A partir do entendimento das falhas, é fundamental ao paciente um acompanhamento médico que entenda a questão transferencial presente na raiz dos distúrbios alimentares. “Trata-se de entender melhor como se dá o comprometimento desses limites para que a experiência na relação transferencial com o analista não deixe o paciente aprisionado numa lógica de intrusão e abandono, de vazio e excesso, de tudo ou nada”, explica Carolina.

Seria necessário, portanto, uma relação na qual se possa construir limites psíquicos, entender o paciente e oferecer-lhe um lugar de conforto, um alívio. Assim, é possível utilizar esses fatores de forma a tornar o tratamento mais eficiente e menos doloroso. Afinal, dor é o que eles menos precisam nesse momento.

Sofia Mendes e Vitória Batistoti/Revista psico.usp, com edição do Jornal da USP


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