Enzima da levedura do pão pode ser alternativa para tratar leucemia infantil

Nos testes iniciais “in vitro”, enzima descrita por pesquisadores da USP e da Unesp demonstrou potencial para matar as células tumorais

 08/11/2016 - Publicado há 7 anos
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Foto: Marcos Santos/ USP Imagens
Utilizada desde a década de 1970 em associação a outros medicamentos, enzima retirada de bactéria é, no momento, a única autorizada no País das três formulações existentes para tratar a leucemia linfoide aguda – Foto: Marcos Santos/ USP

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A formulação disponível atualmente no Brasil para tratar a leucemia linfoide aguda infantil, apesar da alta eficiência (80%), é bastante tóxica. Mas os problemas da L-asparaginase, enzima retirada de uma bactéria, não ficam apenas nos efeitos colaterais – a empresa que a fabricava descontinuou a produção para o Brasil há três anos – e os estoques do SUS vão acabar em algum momento.

Ao ser questionada sobre o motivo da descontinuidade, ou por que a Anvisa não autoriza o uso das outras duas formulações utilizadas atualmente em todo o mundo contra a doença, a professora Gisele Monteiro nos deixa sem as respostas que ela também não tem. Quando o assunto são alternativas, porém, a conversa é longa – e animadora.

Ao lado de outros pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP e do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Gisele trabalha com uma nova enzima que, nos testes iniciais in vitro, demonstrou potencial para matar as células tumorais desse câncer infantil. Um artigo sobre o tema acaba de ser publicado nesta terça-feira (8) na revista Scientific Reports, do Grupo Nature.

“As células tumorais dessa leucemia, em especial, têm uma deficiência na síntese do aminoácido L-asparaginase. Ao colocarmos a asparagina no sangue da pessoa, as células normais sobrevivem pois não apresentam defeito na síntese, mas as tumorais morrem”, explica a pesquisadora. “Parece uma terapia perfeita. O problema é que L-asparaginase é uma molécula muito grande, retirada da bactéria Escherichia coli. Por isso, ela irrita muito o sistema imunológico humano”, esclarece ela, ao reforçar a importância da busca por novos tratamentos.

Levedura do pão

No artigo Recombinant L-asparaginase 1 from Saccharomyces cerevisiae: an allosteric enzyme with antineoplastic activity, os pesquisadores descrevem os testes in vitro realizados com a enzima L-asparaginase, desta vez retirada da Saccharomyces cerevisiae, levedura usada na produção do pão e da cerveja. “Trata-se de um organismo muito estudado, mas esta enzima não havia sido caracterizada. Como a levedura é um eucarioto, ou seja, mais parecido com o organismo humano em comparação às bactérias, espera-se que haja uma menor resposta imune do organismo”, explica a professora. Apesar do mesmo nome, a enzima retirada da levedura apresenta características bem diferentes daquela retirada da E. coli e tem potencial para não apresentar efeitos tóxicos. “E, ao contrário do que foi descrito anteriormente, pode ser utilizada como biofármaco.”
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A esquerda a levedura de onde foi obtido o potencial biofármaco. A direita modelo da estrutura de Asparaginase estudada - Imagem cedida pelo pesquisador
À esquerda, a levedura de onde foi obtido o potencial biofármaco. À direita, modelo da estrutura de asparaginase estudada – Imagem cedida pelo pesquisador

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O processo de produção foi semelhante ao utilizado para produzir a enzima a partir da E. coli. A diferença é que ela não foi retirada de uma bactéria, e sim da levedura. “Utilizamos várias ferramentas de engenharia genética. Isolamos a enzima da levedura e ela foi recombinada em uma bactéria E. coli. Com isso, produzimos uma grande quantidade dessa enzima. Os testes in vitro mostraram que a enzima da levedura é completamente capaz de matar células tumorais”, esclarece.

A autora principal do artigo é a pesquisadora Iris Munhoz Costa, que desenvolveu o tema em sua dissertação de mestrado, sob a orientação da professora Gisele. Os professores Adalberto Pessoa Júnior, da FCF, e Marcos Antonio de Oliveira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São Vicente, também são coautores do trabalho.

Um país sem biofármacos (até agora)

A pesquisa faz parte de um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) coordenado pelo professor Adalberto Pessoa Júnior. Este projeto começou a ser delineado em 2013, quando a empresa que fazia o abastecimento no Brasil dessa enzima desistiu de comercializá-la. “O governo comprou a tecnologia de produção e passou para a Fundação Oswaldo Cruz. Em tese, a produção deveria começar até 2017. Seria uma produção 100% nacional, mas as notícias são de que, provavelmente, isso não vai ocorrer até 2017.”

Foto: Arte de Viver/Graac
Até 25% dos pacientes podem apresentar efeitos colaterais, de alergias leves a choques anafiláticos. Foto: Arte de Viver/Graac

“Nosso país não fabrica nenhum biofármaco. Então começamos este projeto com a intenção de suprir o mercado nacional, e formar mão de obra especializada para produzir não apenas este mas outros biofármacos no Brasil”, revela a docente. Ela lembra que cerca de 50% da verba do Sistema Único de Saúde (SUS) é utilizada para a compra de biofármacos e todos são subsidiados para a população.

A formulação liberada pela Anvisa para comercialização no Brasil é chamada de nativa, ou seja, não sofre nenhum tipo de modificação. No exterior, são usadas duas formulações de enzimas. “Uma delas também é extraída da E. coli, mas são feitas modificações químicas. É a chamada enzima peguilada, mais estável e que consegue se esconder melhor do sistema imune. A outra é retirada da bactéria Erwinia chrysanthemi.”

O próximo passo da pesquisa é fazer novos testes in vitro, dentre eles, para avaliar se realmente não há toxicidade da enzima, e verificar a resposta alérgica e imune. Somente depois disso é que serão feitos testes em cobaias. Caso os resultados sejam favoráveis, o passo seguinte serão testes clínicos (em humanos).

Segundo informações do Instituto Nacional do Câncer (Inca), em 2016 e 2017 serão registrados cerca de 12.600 casos de câncer pediátrico. Desses casos, aproximadamente 25% serão de leucemia linfoide aguda infantil.

Mais informações: (11) 3091-3734, com a professora Gisele Monteiro


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