Teatro brasileiro em nova chave – Sábato Magaldi

Jacó Guinsburg – ECA

 15/07/2016 - Publicado há 8 anos

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Jacó Guinsburg é docente aposentado e Professor Emérito da ECA-USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Pode-se afirmar que os anos de 1940, no Brasil, assinalam, não só o pleno surgimento do nosso teatro moderno, como, em correspondência com ele, o de uma nova crítica a seu respeito.

Ela começou a distinguir-se de suas características anteriores pela ampliação do espectro temático, pelo aprofundamento das buscas artísticas, pelo acirramento das questões ideológicas e pelo apuramento dos parâmetros estéticos.

Neste processo renovador, um nome que veio a impor-se como dos mais representativos foi o de Sábato Magaldi, seja pela intensidade de sua militância jornalística, seja pela envergadura de sua contribuição ensaística.

Por ambas as vias, desenvolveu ele um conjunto de trabalhos que, em forma de monografia ou de publicística, tem hoje um lugar relevante na bibliografia especializada. É o caso de livros como Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações, Um Palco Brasileiro – O Arena de São Paulo e O Texto no Teatro, para não mencionar o consagrado Panorama do Teatro Brasileiro, tido como a mais significativa mise au point histórica de nossa arte dramática e primeira visão abrangente de seus desdobramentos na cena contemporânea.

Como se vê, trata-se de um analista que, embora interessadíssimo nas criações do teatro universal, privilegia a produção do movimento cênico e dramatúrgico em nosso país, dando-lhe o enfoque do discurso crítico moderno.

É nesta perspectiva que se coloca também a Moderna Dramaturgia Brasileira, título que a Editora Perspectiva publicou em sua coleção Estudos. Dizer, como afirma o próprio autor, que estamos de certo modo diante de “uma continuação do Panorama” sob o prisma do texto, dá uma ideia modesta da dimensão desta nova coletânea.

Primeiro volume de uma série prevista para um segundo e talvez um terceiro tomos, compõe em livro o cerrado acompanhamento que Sábato Magaldi fez da sucessão de dramaturgos que construíram o novo repertório teatral, desde Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, passando por Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Lauro César Muniz, Plínio Marcos, até Maria Adelaide Amaral, Edla van Steen e Alberto Guzik.

No todo, são examinados nesta seleção inicial 30 autores e 60 peças – um recorte que, já por si, como densidade quantitativa e projeção sequencial em obra de tal gênero, não tem similar em nossa literatura crítica de e sobre o período.

Neste processo renovador, um nome que veio a impor-se como dos mais representativos foi o de Sábato Magaldi, seja pela intensidade de sua militância jornalística, seja pela envergadura de sua contribuição ensaística.

Entretanto, não é certamente pela extensão numérica de seu índice de matérias que a presente coletânea está destinada a tornar-se livro de referência, se não de consulta obrigatória.

Tampouco há de ser unicamente pela elegância de estilo com que é exposta a operação interpretativa. De fato, temos aqui um autor que escreve bem, ligando-se mesmo à tradição literária mineira do bem escrever. Em outros termos, estamos diante de um escritor na acepção da palavra.

Mas neste seu escrever, não obstante o entrelaçamento orgânico entre forma e conteúdo, o “como” do texto, a linguagem em que é dito, não pode constituir-se e não se constituiu em valor principal em relação a “o que” é dito, ou seja, ao teor da reflexão, da análise, do esclarecimento e da informação ponderada. E é onde Sábato Magaldi sempre primou.

Basta tomar ao acaso alguns dos trabalhos aqui incluídos. Digamos: A Pena e a Lei: Auto da Esperança (1964), Navalha na Carne: Documento Dramático (1967), De Braços Abertos (1986), O Rei da Vela: o País Desmascarado (1991), Um Deus Cruel (1997). Eles provêm de épocas diferentes, em um arco de 30 anos, e focalizam autores e gêneros que pouco têm de comum entre si.

Em nenhum deles, porém, se encontrará a generalidade conceitual, em máscara ideológica, estilística, histórica, sociológica, literária ou artística, a servir de muleta para a digressão crítica.

Ao contrário, é sempre da particularidade da obra dramatúrgica e de seu mundo de relações que são trazidos à evidência o seu universo de significações, com toda a riqueza que estas implicam e tecem.

É uma luz interior, que se projeta de dentro para fora, iluminando não só o jogo do homem pelo jogo da ficção dramática, no plano material e espiritual, como a própria originalidade de espírito da interpretação e do intérprete.

Por sua vez, em Teatro Sempre, deparamo-nos não só com a produção jornalística de Sábato Magaldi, mas com a matéria e o espírito que nortearam ao longo de seis décadas a produção de um crítico que acompanhou, como nenhum outro, o movimento teatral brasileiro, tanto na sua vertente literário-dramatúrgica, quanto na da concretização cênica.

Não é difícil verificar que quem quer que pretenda historiar e avaliar as realizações deste período não poderá fazê-lo sem valer-se deste testemunho abrangente e, sob certos aspectos, único, porque mais do que a crônica dos espetáculos, das direções, das interpretações, das cenografias e dos públicos participantes, tem-se aqui, com os juízos de valor, um pensamento sobre o que é teatro e quais são as suas especificidades, uma vez que Sábato Magaldi foi talvez, dentre o extraordinário conjunto de resenhistas e comentadores críticos do “novo teatro” em nosso país, aquele que levou mais fundo a noção de organicidade do fenômeno teatral, de sua esteticidade per si.

Pode-se dizer, em termos quase absolutos, que com este espectador privilegiado o teatro brasileiro começa a pensar-se e tomar consciência de si mesmo como uma linguagem e como uma arte integral da cena, que só revela o corpo completo de suas obras e de suas mensagens na fugacidade temporal da relação aqui/agora entre o ator/espectador – o que envolve, por outro lado, a atualização do seu compromisso social e cultural, da corporeidade do homem e de seu modo de ser como texto e contexto dramáticos em palavra e ato.

Já em O Texto no Teatro temos a oportunidade de observar a maneira pela qual Magaldi dialoga com a dramaturgia estrangeira, em um percurso que vai de Ésquilo a Heiner Müller.

O livro remete, sem dúvida, ao que ocorre, neste particular, aos grandes centros de atividade teatral. Fruto de uma atuação jornalística incessante, mas também de uma reflexão e pesquisa paralelas e ininterruptas no curso de quatro decênios, acompanha a linha de criação dramatúrgica, na maioria de seus autores e de suas contribuições mais significativas.

Sob este prisma, impressiona, ao lado da sequência e do número de obras e teatrólogos que o ensaísta aborda, a qualidade de sua análise. Lendo-a, e trata-se de uma leitura necessária ao leitor brasileiro interessado na literatura da cena, é-se, desde logo, tomado pela clara percepção de que não se tem diante dos olhos uma resenha e repetição tão-somente daquilo que diz a bibliografia especializada.

Pode-se dizer, em termos quase absolutos, que com este espectador privilegiado o teatro brasileiro começa a pensar-se e tomar consciência de si mesmo como uma linguagem e como uma arte integral da cena, que só revela o corpo completo de suas obras e de suas mensagens na fugacidade temporal da relação aqui/agora entre o ator/espectador

O crítico brasileiro em todos estes ensaios, inclusive nos de menor extensão ou abordagem mais rápida, apresenta, sempre, não apenas uma opinião acerca dos problemas em foco, mas acima de tudo uma visão fundamentada sobre o texto e o teatro a que corresponde. Assim, esse livro vem a ser um real instrumento para o estudo e o conhecimento da escritura teatral, em nosso país.

Em meio a tais contribuições de largo espectro, não podemos, em absoluto, deixar de mencionar as sondagens em profundidade ao nível monográfico, em estudos sobre dramaturgos e peças, como é o caso da incursão pela obra de Nelson Rodrigues, que, discutida, enaltecida ou contestada, se tornou uma espécie de sinônimo do próprio processo de modernização de nosso teatro, visto que a peça-marco deste fato é a encenação de Vestido de Noiva, por Ziembinski, com Os Comediantes.

Entretanto, Sábato não é apenas um crítico que, entre muitas outras coisas, se dedicou igualmente ao teatro rodriguiano, porém, pelo menos até agora, o crítico que mais se debruçou sobre essa criação.

A sua relação com ela não se resume no destrinçamento dos elementos e das conexões desse universo dramático e no aquilatamento de suas intenções e qualidades através de uma série de apreciações críticas.

Nestas, que assumem a forma de diferentes artigos e ensaios sobre cada uma das peças de Nelson Rodrigues e que se corporificam, sobretudo, no presente livro, onde todos esses dados são repesquisados e reavaliados em função de uma análise de conjunto, o crítico embute o conhecimento íntimo de numerosos aspectos e fatores que o longo convívio e a amizade com o dramaturgo lhe trouxeram.

Assim, pode-se dizer, sem qualquer exagero, que Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações é o estudo não apenas o mais empático, porém o mais objetivamente documentado e abrangente sobre o repertório deste autor, cuja significação tem sido crescentemente reconhecida pela única medida indiscutível, em termos teatrais, que é o teatro no palco e cuja avaliação crítica encontrou, em Sábato Magaldi, aquela interpretação que lhe faz justiça, como um dos grandes criadores brasileiros do teatro moderno.

Considerando as contribuições trazidas por este intelectual à cultura brasileira e, em especial, ao nosso teatro não soa demasiado dizer que ao compasso da sucessão de abalos quase sísmicos que vêm revolvendo e transformando as cenas clássicas do que era chamado teatro, as visões e revisões que os nossos palcos sofreram nos últimos cem anos colocam-no em um portal cujo acesso é dado por uma nova chave antropológica, dramatúrgica e estética, a qual tem em Sábato Magaldi um de seus portadores em nossa historiografia e crítica teatrais.

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Ouça a seguir a entrevista do ator Celso Frateschi, professor da Escola de Artes Dramáticas (EAD) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, concedida à Rádio USP (93,7 MHz), sobre a morte de Sábato Magaldi.

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