Só não vai me contar o final

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 27/10/2017 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 22/01/2021 as 20:06
Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Para Mônica Leite

Ultimamente tenho visto pessoas tapando os ouvidos, balbuciando coisas sem nexo ou até saindo correndo quando se começa a falar de um filme, livro ou episódio de série de TV que elas ainda não assistiram nem leram. E não são casos isolados. Existe muita gente assim por aí, no mundo real e virtual. Essas pessoas contraíram o que se pode chamar de síndrome do spoiler ou spoilerfobia.

Mas calma. Não se trata de nenhuma epidemia contagiosa nem do apocalipse zumbi. O spoiler (do inglês spoil, estragar) acontece quando alguém conta algo que possa tirar do espectador ou leitor a surpresa da história. O spoiler, portanto, é a inconfidência que estraga a surpresa. É um estraga-prazer, melhor dizendo.

Na verdade ele sempre existiu, mas não com essa feição patológica dos dias de hoje. Ninguém gosta de saber de pronto a identidade do assassino de cuja história o roteirista ou escritor se empenhou tanto em fazer você não descobrir quem é. Para o spoilerfóbico, contudo, nada pode ser dito, porque, segundo ele, por trás de qualquer informação, mesmo a mais insignificante, pode estar escondida uma pista para desvendar o final.

(De alguma forma, creio eu, os spoilerfóbicos superestimam a capacidade criativa dos autores. Um tropeço narrativo, uma incongruência qualquer no enredo, para eles, se transforma em metáfora.)

Apesar de o conceito moderno de spoiler ter se originado no contexto do cinema e das séries de TV, estando estes, é claro, muito bem ensaboados na espuma da internet, ele acabou contaminando também a literatura, e assim criou um problema adicional para nós outros, pobres resenhistas de livros: se nada pode ser dito, sob o risco de virar spoiler, o que dizer?

Alguns resenhistas criaram alternativas para não ferir suscetibilidades e de certa maneira contornar o problema. Anunciam solenemente que em seguida virá um spoiler ou, quando não tem jeito, pedem perdão depois de dá-lo. Outros, mais radicais, adotaram táticas quase kamikazes, de falar de tudo menos do livro em questão. Comentam a vida do autor, a situação política do país, a qualidade da tradução, os descuidos da revisão, a formosura da mulher do editor, mas nada de detalhes comprometedores.

Conheço um resenhista que concebeu um método minimalista de só informar a ficha de crédito do livro. Ele preenche um quarto de página de jornal com o título do livro, o nome do autor, sua data de nascimento e morte, nome do tradutor, do capista, país, data da publicação, editora, número de páginas, tamanho, tipo de papel etc.; e todo mundo fica feliz. Seu método, no entanto, não é totalmente infalível. Se tivesse de resenhar, por exemplo, uma nova tradução de A morte de Ivan Ilitch não teria como escapar do spoiler. O título já é um!

Assim posto, pode-se dizer até que Tolstoi inventou o spoiler. Mas Tolstoi não estava nem aí pra isso, como nem aí estão quem relê livros ou revê filmes. Mesmo sendo ótimo se surpreender com um final bem arquitetado, são os mecanismos que levam a esse final (incluindo aí a linguagem) que não nos fazem esmorecer diante da história e, então, voltar a ela outras vezes.

Veja os contos de fadas. Para eles não há perigo de spoiler. Todos terminam felizes para sempre – sempre. Aliás, crianças não dão a mínima para spoiler. Elas não se incomodam de assistir cinquenta vezes o mesmo desenho ou de ouvir cinquenta vezes a mesma história. Nós é que ficamos incomodados. Por elas? Talvez. Ou talvez por nós mesmos, por termos perdido essa capacidade de apreciar uma história sem nos preocupar com seu final.

No caso particular das séries de TV, cuja oferta ultimamente é vastíssima, a situação é ainda pior, pois cada episódio tem o seu próprio “final” passível de spoiler. E pensar que até bem pouco tempo as séries estrangeiras eram chamadas de enlatados e as telenovelas, de ópio do povo… Hoje as coisas são bem diferentes, todo mundo tem Netflix, baixa filmes na internet e acompanha sem pudores os episódios do House of cards. E se você assiste um, quer assistir o seguinte e, quando vai ver, passou a tarde inteira no sofá.

Isso porque, como se sabe, tanto as séries quanto as telenovelas, em que pesem as inúmeras diferenças, a começar pelo suporte (eita palavrinha entojada!), foram inspiradas nos folhetins do século XIX, os quais também angariavam as mais duras diatribes de madames e cavalheiros mui doutos e bem-pensantes da época.

Alexandre Dumas era achincalhado pela crítica, Charles Dickens não era bem-vindo nas reuniões de refinados grêmios literários. Se você fosse apanhado lendo uma história deles, muito provavelmente seria excluído do clubinho, o que significava deixar de frequentar saraus chatíssimos onde se declamavam trechos da obra da mais fina flor do beletrismo de então; onde havia fartura de guloseimas, de anáguas e de bocejos.

Os folhetins, por sua vez, para manter coçando a ferida do interesse, desde sempre flertaram com as Mil e uma noites, adotando o princípio de suspender para excitar. Uma espécie de coitus interruptus da narrativa, que a bela e sedutora Sherazade usou e abusou para engambelar o sultão. Num embuste genial, convenhamos. E que talvez tenha sido inspirado em outro, ainda mais antigo, de Penélope, mulher de Ulisses, ao desfazer à noite o tapete produzido durante o dia e cujo término daria aos seus pretendentes o direito de desposá-la. Mas essa é outra história.

Como nos informa E. M. Forster, nos Aspectos do romance, essa predisposição vem de muito mais longe, do Neolítico ou Paleolítico, quando os homens primitivos, depois de um dia de trabalho intenso, só se mantinham acordados ao redor do fogo pelo suspense das histórias narradas. O bom e velho “o que vem depois?”. A expectativa da surpresa, portanto, sempre moveu o interesse por histórias, sejam elas filmadas, escritas ou faladas.

O que nos leva a imaginar a seguinte situação, em que dois neandertais se encontram no meio do dia, do lado de fora da caverna: “Pô, cara, você perdeu a fogueira de ontem”. “Pois é, não deu pra ir, tava faltando carne de rinoceronte peludo na despensa de casa…” “A história foi sensacional!” “Tô sabendo, mas o ancião prometeu que vai contar de novo na próxima lua.” “Cara, o final é muito da hora! Bem quando o mamute tá quase…”

Não chegou a terminar o spoiler: levou uma trabugada daquelas na cabeça, pois neandertal que se preza não deixa ninguém estragar assim tão facilmente o seu prazer.

 

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