Quando se sai fora do tempo – Boris Schnaiderman

Jacó Guinsburg – ECA

 20/05/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 23/05/2016 as 21:37
Jacó Guinsburg é tradutor, crítico de teatro, ensaísta, e professor da Escola de Comunicações e Artes
Jacó Guinsburg é tradutor, crítico de teatro, ensaísta, e professor emérito da ECA
Outro dia, correndo os olhos por minha estante, detive-me, por acaso, com a coletânea de contos de Maksim Górki, traduzidos para o português. Era uma publicação da Philobiblion, do Rio de Janeiro, numa reedição da versão anterior de 1962 da Civilização Brasileira. O tradutor, pela reconhecida qualidade de sua contribuição nessa área, suscitou em mim a vontade de relê-los. E, ao fazê-lo, pareceu-me que o reencontro desses relatos com o eu-leitor gerou em minha imaginação não só o mundo pelo qual sempre fui atraído, como pelo encanto e a modulação de uma escrita. E isso por vários motivos.

O primeiro é que, fiel aos princípios que vêm guiando o seu trabalho nesse domínio, o tradutor reviu a racolta gorkiana com o mesmo cuidado que dedicou a outras traduções suas, de autores russos, reimpressas nos últimos anos, como ocorreu especialmente com os relatos de Tchékhov, em 1985. E o resultado desse esforço é dos mais compensadores para o leitor de língua portuguesa.

Fiel aos princípios que vêm guiando o seu trabalho nesse domínio, o tradutor reviu a raconta gorkiana com o mesmo cuidado que dedicou a outras traduções suas, de autores russos, reimpressas nos últimos anos

Mas, independentemente da maior confiabilidade da versão, na medida em que ela passou a ser produto de sucessivos cotejos rigorosos com o original, o que importa em realizações desse gênero, e é marcante no caso em exame, é a qualidade literária da transposição. É claro que o brilho é de Górki, cabe supor, mas em português, não deixa de ser, e em larga medida, também a de seu veiculador nesta língua. Aliás, trata-se de uma característica que o tem distinguido ao longo do tempo.

A sensibilidade e a garra de ficcionista afeito ao corpo a corpo com a palavra conferem a seus textos, no pormenor designativo e na articulação configurativa, uma precisão vocabular e uma fluência de linguagem relevantes, colocando-se entre o que de melhor se faz em nosso meio, em matéria de tradução do russo, como os comentários críticos já assinalaram reiteradas vezes.

Na verdade, efetuando um verdadeiro trabalho de recriação do escrever gorkiano, Boris Schnaiderman parece possuir para cada sugestão ou referência textual do autor russo a expressão adequada e funcional em português, ou seja, a transcriação que, à vista e à impressão ledora, se ajusta como uma luva ao fluxo narrativo e às nomeações que o compõem. E isso sem incidir nos antigos espartilhos literários do “bom” estilo padronizado.

É claro que o brilho é de Górki, cabe supor, mas em português, não deixa de ser, e em larga medida, também a de seu veiculador nesta língua. Aliás, trata-se de uma característica que o tem distinguido ao longo do tempo

Mas antes, ao contrário, depurando do que ainda restava de suas imposições na primeira apresentação dos contos, em vernáculo a linguagem de Górki flui, nessas condições, como se tivesse sido concebida e grafada em nosso idioma, sem que os estrangeirismos russos – necessários, sem dúvida, para exprimir elementos específicos e, mais ainda para colorir com matrizes locais diferentes aspectos dos textos – introduzam uma perturbação na leitura. Essa qualidade torna-se tanto mais valiosa quanto as histórias gorkianas tão marcantes na sua caracterização da paisagem humana russa abordada pelo escritor não são menos expressivas com respeito à paisagem que as cerca.

Com isso, as referências psicológicas e sociais dessa humanidade que no seu desarraigamento, na sua vagabundagem, na sua orfandade material e, às vezes, espiritual, fica entre a miséria de suas vicissitudes de vida e a riqueza de suas potencialidades humanas e espirituais, o que se traduz, no plano ficcional, num jogo nem sempre bem rematado entre fortes retratos realistas e vagos anseios românticos.

A distância abolida do tempo do mundo gorkiano desfaz-se na realidade da vida e ela é também da morte, fatalidade que não deixou escapar, depois de escritas estas linhas, um homem que consagrou sua vida à palavra dos homens. À memória de Boris Schnaiderman.

 

 

 

 

 

 

 

 


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