Os jogos sem memória

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira

 18/04/2018 - Publicado há 6 anos

Katia Rubio – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

É inegável que as marcas deixadas pelos Jogos Olímpicos não se apagam. Seja pela performance de um desconhecido entregador de água mineral, como o grego Spiridon Louis, que se tornou herói nacional após vencer a primeira maratona em 1896, seja pela determinação de tantos esquecidos que gastaram até as últimas energias para finalizar uma prova, sem holofotes, sem fotógrafos para registrar seus feitos. Isso é o esporte olímpico: o espetáculo grandioso e emocionante para uns e também a busca de um lugar na história com a afirmação de um pertencimento pouco ou nada compartilhado.

Antes de se tornar o fenômeno midiático que se tornou, os Jogos Olímpicos tiveram a sua história registrada de diferentes formas. Muitos dos estádios e ginásios construídos para as competições olímpicas permanecem em atividade, alguns mantendo a forma original, outros adaptados às circunstâncias da cidade ou do país que realizou o evento. A permanência de um gigante de concreto em meio à cidade é um dos registros indiscutíveis de tudo o que aconteceu em seu interior, é a caixa depositária de façanhas humanas que remetem à memória afetiva não apenas de quem competiu, mas de quem acompanhou proximamente um ritual agonístico. A questão dos custos e da ocupação da estrutura física dos Jogos Olímpicos tornou-se tão fundamental ao Comitê Olímpico Internacional que o plano de uso futuro desses equipamentos conta no atual contexto pontos preciosos no projeto de postulação de qualquer cidade candidata. Na atualidade o COI, por estar comprometido com agendas internacionais, entende que demolir ou não ocupar adequadamente uma estrutura que teve alto custo para os realizadores não é aceitável, muito embora seja de responsabilidade do governo local a gestão e ocupação desses espaços que foram, por alguns dias, considerados solo olímpico. No caso das instalações do Rio de Janeiro a questão parece insolúvel. Passados quase dois anos inúmeras arenas, ginásios, estádios e a vila de atletas permanecem subutilizados, ou sem uso, onerando os já alquebrados cofres públicos. O chamado legado permanece um problema, e não uma herança.

Mas, aquilo que efetivamente poderia ser o registro de toda essa aventura, corre o risco também de deixar de pertencer ao país. Vale lembrar que grande parte da memória relacionada com os Jogos Olímpicos realizados na primeira metade do século XX está registrada em documentos produzidos em formato de relatórios e cartas trocadas entre os envolvidos com a realização do espetáculo. Ali podem ser encontradas informações preciosas como nomes de pessoas e locais, a evolução de algumas ideias que se materializaram posteriormente, demandando discussões intermináveis entre os defensores de diferentes posições, bem como as alianças que permitiram que o Movimento Olímpico se tornasse aquilo que veio a ser. Mais curioso ainda é imaginar que tudo isso era realizado em um momento em que a circulação de cartas e relatórios dependia do tempo do serviço postal para chegar aos destinatários. Por isso as decisões demoravam meses para ser anunciadas, como foi o caso da escolha de algumas sedes olímpicas. Tive o privilégio de consultar vários desses documentos no Centro de Estudos Olímpicos de Barcelona e também no Centro de Estudos do Museu Olímpico de Lausanne, referências para estudiosos do olimpismo, e saber a importância e o valor que papéis como aqueles representam para quem estuda e pesquisa o desenvolvimento de instituições.

Isso é o esporte olímpico: o espetáculo grandioso e emocionante para uns e também a busca de um lugar na história com a afirmação de um pertencimento pouco ou nada compartilhado.

Dias atrás fui surpreendida pela notícia de que o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016 irá se desfazer dos 5.500 documentos relacionados ao processo de postulação e realização dos jogos por falta de recursos para catalogá-los e alojá-los adequadamente. Caso nenhuma instituição brasileira se responsabilize por essa tarefa, é provável que todo esse acervo seja encaminhado ao COI ou a algum centro de estudos no exterior.  São mais que papéis ou HDs, é toda a história de um processo que envolveu centenas de pessoas que pensaram e viabilizaram uma candidatura que se sagrou vitoriosa perante outras com tantos requisitos, ou mais, que o Rio de Janeiro. Ali se encontram desejos, promessas, compromissos e contratos que foram total ou parcialmente honrados, ou simplesmente negligenciados. No afã da realização do evento poucos foram os especialistas interessados em investigar atentamente o conteúdo desse patrimônio, que agora corre o risco de ficar distante da atenção de quem precisa de tempo para poder digeri-lo e processá-lo. Imagino a perda que o envio desse material para outro país possa causar aos futuros pesquisadores dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Penso ser dever nosso proporcionar às futuras gerações o entendimento de todo o turbilhão que representou esse evento em tempos tão conturbados como foram os últimos anos.

Assistindo às celebrações dos 50 anos dos conturbados Jogos Olímpicos do México, percebo a importância da preservação de acervos. Naquela edição olímpica ficou evidente a aproximação entre política e esporte, com manifestações dos atletas norte-americanos do atletismo contra a discriminação racial e o apoio nacionalista por parte do boxeador George Foreman. Vimos também os desdobramentos da Guerra Fria no embate físico entre as seleções soviética e americana de polo aquático tingindo de vermelho a água da piscina. E ainda a ginasta tcheca se recusando a cumprimentar as rivais soviéticas em razão da invasão à Praga, meses antes. O que pouco vimos, ou soubemos, foi sobre os registros do planejamento e da execução das obras olímpicas, denunciadas como superfaturadas, ou sobre a invasão da universidade mexicana que deixou dezenas de mortos faltando dez dias para o início da festa.

Espero que daqui a 50 anos seja possível fazer uma retrospectiva do que aconteceu no Brasil e que esses documentos, mantidos em alguma instituição pública, ajudem a fundamentar uma análise dos ganhos e dos prejuízos relacionados aos Jogos Olímpicos. Em tempos de transparência seria inadmissível chegar à conclusão de que dados precisos caíram no esquecimento, juntamente com o acervo que o Comitê Organizador não teve dinheiro, ou vontade, para preservar.

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