O Velório e a Matemática

Paulo da Veiga é professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP

 10/10/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 21/10/2017 as 15:03

Foto: Wikimedia Commons

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Paulo Veiga – Foto: Reinaldo Mizutani

Qualquer um que já tenha passado anos de sua vida ensinando numa universidade tem, por certo, muitas histórias pitorescas para contar. Essa de hoje retornou ao seu maior protagonista depois que o filho de um amigo a ouviu de seu professor, outro participante da história, e a contou ao seu pai, meu colega. Após alguns anos de esquecimento, os detalhes já me tinham fugido da memória e tiveram que ser resgatados.

Acontece que, logo depois desse evento, não sei como, os fatos nele descritos transformaram-se seguidamente em sinais elétricos viajando por fios e fibras ópticas, e não poderiam deixar de serem distorcidos aos poucos. Com isso, depois que, no final de um encontro de reitores no Chile, onde um colega me contou essa mesma história recebida no seu email, resolvi registrar a versão oficial no papel.

Foi no final dos anos 1990, quando eu ensinava uma disciplina bela de matemática básica a engenheiros universitários. Apesar de um tamanho esforço para sempre cumprir com o meu ofício de mestre da melhor maneira possível, não há dúvida que o universo imediatista dos alunos me outorgou a patente de professor interessado, dedicado, mas ferrador. E claro que quase que apenas o último adjetivo cruzou as barreiras do tempo, tendo mesmo chegado à mesa do consultório clínico de minha irmã, em Ribeirão Preto: “não me diga que você é irmão dele”, disse a médica à mãe do paciente, então meu aluno. Da maneira que minha irmã me relatou o incidente, pude imaginar a face de horror de tal progenitora!

Mesmo que viver com dúvidas não faça lá parte constante do meu consciente, isso tudo nos faz ficar pouco hesitantes sobre o que somos. Felizmente não é sempre assim e, às vezes, chamam-me também de bonzinho.

Foi assim um dia em que, poucas horas depois de eu ter ministrado uma prova a uma turma de calouros, um bando deles veio até a minha sala contando-me um triste episódio. O papo foi que os cinco estudantes moravam todos juntos numa república e que o avô de um deles havia falecido em uma cidade pouco distante da nossa. Como o colega-neto ficou, ele mesmo, em estado deplorável, depois de saber da perda do avô, resolveram os outros quatro manifestar-lhe apoio e lá se foram todos em caravana dar o adios ao querido nonino.

Até aí, tudo bem. Mas foi então que García Marques entrou em ação. A prosa continuou relatando que a intenção de todos era de estarem em sala de aula para realizar a minha prova mas que, infelizmente, durante o trajeto de retorno, um pneu do carro que os trazia furou na estrada. E esse foi o início da tragédia que acabou por impor que nenhum representante daquela república estivesse presente na prova.

Como que o comprador de um lote de terra avassalado por um corretor de imóveis, eu – o irmão da competente médica – fui camarada e simplesmente disse aos alunos para retornarem no dia seguinte às 10 horas para fazerem a prova.

Tudo bem até o momento deles voltarem a me encontrar ficar cada vez mais próximo! Comecei a ter palpitações sobre ter tomado tal decisão sem nenhuma garantia maior. Esse sentimento perturbador me fez ter a feliz ideia de não imprimir a prova que lhes daria em minutos até esclarecer um pouco mais a situação: verdade ou mentira aquela história mirabolante? Será que estes estudantes iriam ludibriar o professor que eles cunhavam de carrasco-vilão?

Foi assim que preparei rapidamente outra prova, com cabeçalho oficial bonito e lugares num quadro para colocar as notas de cada exercício e o total. Na primeira página, a primeira pergunta valendo meio ponto pediu para eles calcularem a derivada da função sen x. Para quem sabe do que isso trata, é quase como pedir a alunos do primário para completarem com a resposta correta a questão 1+1 =? Virando a página, a segunda e última pergunta, valendo os nove pontos e meio restantes, surgiu como uma luz para resolver minhas dúvidas, e reservava-lhes uma surpresa.

Chegaram os cinco estudantes. Cumprimentamo-nos como gente, e fomos a uma salinha retangular onde eu os dispus cada um num canto e o outro no centro.

Curiosamente, todos riram com o enunciado da primeira questão, e a responderam com afinco, provavelmente pensando no sucesso que teriam ao fazer a prova um dia mais tarde que os seus colegas.

A situação mudou quando viraram a página e leram o enunciado da segunda questão. Esta, de matemática universitária básica e abstrata, nada tinha. Apenas lhes endereçava a mais humana das perguntas: qual pneu furou? Com uma probabilidade pequena de acerto conjunto no chute (uma chance em 1024!), olhares mútuos foram trocados e todos se levantaram depois de um deles decidir responder que o pneu que furou foi o estepe. Eu, sem um pingo de ironia, senti-me tranquilo e de alma lavada.
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Foto: Wikimedia Commons

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Levantaram-se e sorriram para mim e, em silêncio, seguimos todos para os nossos próximos destinos. Boa parte dos cinco ou todos foram aprovados fazendo o restante dos exames convencionais. Hoje, engenheiros com provável sucesso nas carreiras, devem estar a pensar melhor em suas palavras e no comportamento dos políticos de Brasília, aguardando chegarem aos seus ouvidos as histórias mirabolantes contadas pelos seus filhos.

 

Texto redigido em 25 de abril de 2010

 

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