O ateliê do artista – anotações através do buraco da fechadura

Alecsandra Matias de Oliveira – ECA

 05/09/2016 - Publicado há 8 anos

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artesda ECA-USP - Foto: Divulgação

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e pesquisadora do Centro Mário Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da ECA-USP – Foto: Divulgação

 

Nos últimos anos vem crescendo gradativamente o interesse pelo ateliê – o espaço físico destinado à criação e ao trabalho do artista. Diversas pesquisas, publicações e eventos científicos têm evidenciado o tema e sua importância para a compreensão dos processos de produção e recepção da arte.

Some-se ainda que o ateliê, como espaço concreto ou de representação, torna-se recinto privilegiado, onde interagem relações entre o processo criativo, as obras de arte e a imagem do artista. Os chamados estúdios também reservam aspectos que tocam em questões, como o privado e o público; o ensino e a aprendizagem; e a comercialização da arte. Todas essas relações têm interessado investigadores da história da arte de universidades brasileiras e internacionais.

Distante do discurso organizado das exposições, bienais e feiras de arte, conhecer os ateliês dos artistas é adentrar sua dimensão mais íntima; é a possibilidade de observar uma história em cada canto; é olhar pelo buraco da fechadura. O ateliê, como espaço concreto ou de representação, torna-se recinto privilegiado, onde interagem relações entre o processo criativo, as obras de arte e a imagem do artista.

O ateliê de Auguste Rodin, por exemplo, era sua residência, em Meudon, cidade muito próxima de Paris. O estúdio era conhecido como Villa des Brillants e nesse local a maioria das obras de Rodin foram produzidas. Em 1900, cerca de 50 pessoas – entre assistentes e fundidores – trabalhavam com o mestre-escultor. O ateliê-casa se converteu em museu em 1948, abrigando numerosos emplastros e moldes de obras, como As portas do inferno, Os burgueses de Calais, vários estudos para Balzac e os monumentos a Victor Hugo, Puvis de Chavannes e Whistler, além de oferecer uma reconstituição do ambiente privado e de trabalho do escultor.

O ateliê, como espaço concreto ou de representação, torna-se recinto privilegiado, onde interagem relações entre o processo criativo, as obras de arte e a imagem do artista

Localizado no Quartier Latin, em Paris, o sótão que serviu de ateliê para Picasso está fechado ao público desde novembro de 2013, porém, o lugar foi declarado monumento histórico pelo Ministério da Cultura Francês e espera-se sua reabertura em breve. Lá, Picasso viveu por 18 anos e pintou a famosa Guernica, em 1937. Mas é preciso dizer que Picasso teve outros lugares de inspiração. Ele viveu em Cannes e Antibes, região de Provence e passou uma temporada marcante no Castelo de Vauvenargues, em Aix-en-Provence. Entre fevereiro de 1959 e junho de 1961, o pintor viveu no Castelo com sua esposa, a fotógrafa Jacqueline Roque. Nesse ateliê-casa, Picasso pintou a tela Jacqueline de Vauvenargues, retrato de sua esposa. A estada do pintor foi relativamente curta, mas o local foi significativo em sua trajetória: na entrada do castelo estão enterrados os corpos de Picasso e Jacqueline. Desde 2009, o lugar abre eventualmente ao público visitante.

Salvador Dalí também teve seu ateliê-residência em um castelo. Após a morte de Gala, sua amada e musa, em 1982, o artista se mudou para uma construção medieval em La Pera, Catalunha, e fez dela sua oficina de trabalho e o mausoléu de Gala. Antes desse período, o pintor surrealista morou em Portlligat, também na Catalunha, sua casa-museu tem formato labiríntico, onde se encontram tapetes, móveis e outras peças que pertenceram ao artista. O público pode visitar os quartos, as salas de estudo e as áreas ao ar livre.

A Casa Azul, ateliê-residência de Frida Kahlo, não chega a ser um castelo, mas impressiona pelas paredes azuis e pela quantidade de memórias que guarda da pintora mexicana. Primeiramente, a casa era de seus pais, mais tarde, virou residência de Frida e de seu marido, o muralista e pintor Diego Rivera, entre os anos de 1929 e 1954. Foi nessa casa que ela nasceu, viveu e passou seus dias finais. Em Cocoyoacán, no distrito da Cidade do México, a Casa Azul tem expostas diversas obras de Frida, seus objetos, documentos, fotografias, vestidos, espartilhos em gesso e cintas de couro. Foi aberta ao público, em 1958 – quatros anos após a morte da artista.

Como exemplo de casa-ateliê, no Brasil, tem-se o Museu Casa de Portinari, em Brodowski, região noroeste do Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos, Cândido Portinari nasceu em 1903, na Fazenda Santa Rosa, onde seu pai trabalhava na lavoura de café. Candinho, como era chamado carinhosamente por sua família, viveu em Brodowski durante a infância – antes de partir para o Rio de Janeiro, aos 15 anos de idade, em busca de estudos na Escola Nacional de Belas-Artes.

O museu é composto de casa principal e construções anexas, resultantes de sucessivas reformas e ampliações. Suas paredes revelam surpreendentes murais pintados por Cândido Portinari. Nos espaços da casa estão móveis e utensílios utilizados pela família Portinari, indicando, sobretudo, um modo de vida. Os trabalhos do artista presentes na casa são murais nos quais emergem especialmente as técnicas do afresco e da têmpera, além de terem temática predominantemente religiosa.

Há ainda uma coleção de desenhos e notas bibliográficas. Os lugares mais destacados do museu são o ateliê do artista, a Capela da Nona e os jardins. Algumas dependências permanecem com suas funções originais e outras foram adaptadas para espelharem a produção artística de Portinari, sua vida e sua relação com a casa, a família e a cidade. Na Capela da Nona, construída em 1914, porque a avó de Portinari não poderia ir mais à missa pela idade avançada, Candinho fez pinturas murais em têmpera que representavam os santos prediletos de sua avó com as fisionomias de seus familiares e amigos.

A Casa Azul, ateliê-residência de Frida Kahlo, não chega a ser um castelo, mas impressiona pelas paredes azuis e pela quantidade de memórias que guarda da pintora mexicana. Primeiramente, a casa era de seus pais, mais tarde, virou residência de Frida e de seu marido, o muralista e pintor Diego Rivera, entre os anos de 1929 e 1954

Então, o local do trabalho dos artistas desvelam diversas narrativas sobre o seu processo criativo e sobre a eleição de suas técnicas e suas temáticas. São lugares que guardam a memória, a intimidade e os afetos destes criadores. Para alguns, a reclusão e o afastamento de qualquer distração possível são as marcas de seu ateliê. Para outros, seu espaço necessita de evasão e liberdade. Quando esses ateliês, muitas vezes também residências se transformam em museus, o público ganha o direito de adentrar o espaço do labor e nos lugares mais secretos da criação artística. Simultaneamente, os pesquisadores ganham centros de referências e ampliam suas possibilidades de estudos sobre todos os desdobramentos que envolvem o fazer artístico.

Há muitos outros exemplos de casas-museus e, acrescente-se que existem artistas que veem seus ateliês somente como oficina de trabalho, distinguindo a casa do trabalho (ou o privado do público). Ou ainda, artistas como os contemporâneos, tomando o caso de Andy Warhol, que inaugurou o conceito de Factory, um espaço onde aconteciam a criação, os happenings e as festas da boêmia nova-iorquina. Mas, essa é outra história … e uma outra anotação.

 

 


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