Ives de La Taille é docente aposentado do Instituto de Psicologia da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
E se eu cito aqui a frase do cotidiano francês, é que ela justamente ilustra – se é que esta palavra fraca pode ser empregada aqui e agora – a meu ver uma recusa talvez inconsciente do mundo ocidental em reconhecer que ele mesmo pode causar este tipo de tragédia.
Com efeito, na pergunta citada há apenas duas opções: ou o crime foi cometido por alguém com problemas patológicos (um doente, portanto), ou alguém inspirado por alguma transcendência, por alguma ideologia importada de alhures, no caso o fundamentalismo islâmico que reivindicou ultimamente vários atentados aqui e ali no planeta.
E se não fosse nem uma coisa nem outra?
Esqueçamos momentaneamente o sinistro crime cometido no dia 14 de julho de 2016 e lembremos outros, de memória também sinistra: Estados Unidos, 1999: dois estudantes matam treze pessoas. Alemanha, 2002: um estudante mata dezessete pessoas. Brasil, 2003: um estudante atira em oito pessoas. Estados Unidos, 2007: um estudante mata trinta e duas pessoas. Finlândia, 2007: um estudante mata oito pessoas. Finlândia, 2008: um estudante mata dez pessoas. Alemanha, 2009: um estudante mata quinze pessoas. Brasil, 2011: um ex-estudante mata doze pessoas.
E há outros exemplos. Além de matarem cegamente quem estivesse na sua frente, esses criminosos tinham pelo menos duas coisas em comum. A primeira: não justificaram seu crime em nome de um fundamentalismo religioso, aliás, não reivindicaram nenhum valor transcendente para seus atos. A segunda: após a carnificina, mataram-se.
Seus casos em nada lembram o de Anders Behring Breivik, norueguês que em 2011 assassinou 77 pessoas e, longe de se suicidar em seguida ou enfrentar uma inevitável morte por bala policial, permaneceu vivo e disposto, sem vergonha nem culpa, a enfrentar a justiça de seu país.
Voltando aos jovens que atiraram a esmo, é claro que os artigos de jornal que foram redigidos após os massacres darem ênfase à matança. Porém, a meu ver, não deram o destaque necessário aos suicídios que sucederam aos crimes, suicídios estes que, note-se, enfraquecem a tese de que se trataria de ‘desequilibrados’ no sentido de pessoas mentalmente doentes.
Um ou outro talvez fosse de fato ‘patologicamente perturbado’, mas generalizar esta explicação parece-me simples demais. Parece-me cômodo demais. Insisto: os tristes episódios de que tratamos devem ser pensados como crimes, mas também como suicídios.
Ora, o suicídio é um ato bastante presente na cultura ocidental atual. Então, falemos um pouco mais deste ato que, segundo Albert Camus, representa o único problema existencial realmente sério: “Julgar que a vida não vale a pena ser vivida, é responder à questão fundamental da filosofia”[1].
“No conjunto do planeta, o suicídio mata em torno de 100 pessoas por hora”, escreveram Baudelot e Establet[2]. Escreveram eles também que “a taxa de suicídios entre os jovens de 15 a 24 anos triplicou na segunda metade do século 20”[3]. No ano de 2000, houve 815 mil suicídios, contra 510 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil por guerras, eis o diagnóstico da Organização Mundial da Saúde.
Se eu cito aqui a frase do cotidiano francês, é que ela justamente ilustra – se é que esta palavra fraca pode ser empregada aqui e agora – a meu ver uma recusa talvez inconsciente do mundo ocidental em reconhecer que ele mesmo pode causar este tipo de tragédia.
Por que tal ‘epidemia’? Durkheim com a sua tese da anomia pode ainda nos ajudar a responder a esta pergunta, pois uma coisa me parece certa: quando há épocas, como a nossa, durante as quais o número de mortes voluntárias aumenta, razões culturais estão em jogo, razões que apontam para o diagnóstico que vivemos numa cultura de alguma forma doente.
De minha parte, dediquei toda uma reflexão que me fez chegar à conclusão de que vivemos numa cultura do tédio [4] na qual enfrentamos uma ‘vida em migalhas’, geramos relações superficiais, abolimos a solidariedade, vivemos num deserto de valores, vivemos num mundo que sofre do ‘mal de vivre’ no qual “a máquina hedonista é uma máquina que produz depressivos, que ela recicla com antidepressivos”[5] .
Esse diagnóstico, e outros, levam à seguinte conclusão: vivemos num mundo no qual é muito difícil atribuir sentido às coisas em geral e, logo, atribuir sentido à vida. Ora, o que é o suicídio senão a decorrência de que viver não faz mais sentido e, logo, não vale mais a pena? É provavelmente o que aconteceu com esses jovens de que estamos falando.
Mas então, porque também mataram? Somente posso dar uma pista a ser explorada. Essa mesma ‘cultura do tédio’ considera a si própria como o reino do prazer e da felicidade povoada de líderes, de vencedores, de celebridades.
Logo, quem não consegue ser feliz, quem se acha ‘perdedor’ e ‘zé ninguém’ deve apenas culpar a si mesmo e aguentar a humilhação e a invisibilidade social. Acrescente-se a isto que numa cultura do tédio, a moral, que serviria de freio para não agredir outrem, é luxo.
vivemos numa cultura do tédio [4] na qual enfrentamos uma ‘vida em migalhas’, geramos relações superficiais, abolimos a solidariedade, vivemos num deserto de valores, vivemos num mundo que sofre do ‘mal de vivre’ no qual “a máquina hedonista é uma máquina que produz depressivos, que ela recicla com antidepressivos”[5] .
Logo, pode nascer naqueles que se sentem ‘perdedores’ um sentimento cego de vingança. E pode nascer também a vontade de deixar marcas trágicas de seu desespero. Foi pelo menos o que quis Richard Durn, francês que, em 2002, abriu fogo sobre conselheiros municipais matando vários de seus membros para depois suicidar-se.
Escreveu ele no seu diário: “Eu não me respeito, eu não me amo (…) Imagino-me sempre perdendo. Por isso tenho vergonha, então fico paralisado (…) Por que fazer de conta que estou vivendo? Apenas posso, durante alguns instantes, sentir-me vivendo matando”.
De qualquer forma, uma coisa me parece certa: se Durn e outros não tivessem tido a vontade de acabar com suas próprias vidas, eles não teriam acabado com a vida de outras pessoas.
Voltando a Mohamed Lahouaiej Bouhel, o assassino de Nice, será ele ‘desequilibrado’? Talvez. Mas com bastante capacidade de planejamento para levar a cabo seu ato! Será ele um jihadista? No momento em que acabo esse artigo, ainda não se sabe ao certo (o grupo Estado Islâmico reivindicou o crime, mas isto não prova nada enquanto não forem encontradas evidências da relação de Bouhel com os chamados ‘radicalizados’).
A hipótese de que ele esteja mais próximo dos jovens assassinos de Columbine do que do Estado Islâmico não deve ser, creio, descartada (como o tem feito o governo francês, que logo falou em atentado terrorista). Mas uma coisa é certa, para ele tratava-se de matar, sim, mas também de morrer.
[1] Camus, Albert (1942), Le mythe de Sisyphe, Paris: Gallimard, p. 15.
[2] Baudelot, Christian & Establet, Roger (2006). Suicide: l’envers de notre monde. Paris: Seuil, p. 7
[3] Ibid, p. 138.
[4] La Taille, Yves de (2009). Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed.
[5] Minois, Georges (2005). Histoire du Mal de vivre: de la mélancolie à la dépression. Paris: Editions de La Martinière, p. 390.