Macron e Netanyahu, antissemitismo – antissionismo

Eva Alterman Blay é professora titular da USP

 28/07/2017 - Publicado há 7 anos

Eva Blay – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Foto: Eva Alterman Blay
Buscava eu uma estação de metrô em Paris, atraiu-me uma estranha placa: “Square de La Place des Martyrs Juifs du Vélodrome d’Hiver. 1989”. Procurei a praça, o local ficava do outro lado da avenida. Havia uma alameda que levava ao monumento em lembrança da “prisão e deportação” de judeus na França durante a Segunda Guerra Mundial. ”Não esqueceremos jamais”, estava inscrito na pedra, junto às faces esculpidas de judeus perseguidos pelo racismo e antissemitismo, homens, mulheres, de todas as idades, e crianças. A homenagem lembrava que ali, ao lado do Sena, no Quai de Grenelle, havia no passado o Velódromo de Inverno, ponto para partidas de corridas de bicicletas. Mas em 16 e 17 de julho de 1942, nesse mesmo local foram aprisionados 13.152 judeus, dos quais 3.000 crianças. O motivo: eram judeus.

Os nazistas, com o apoio incondicional do governo de Vichy, usou a polícia francesa para prendê-los, separar as famílias e enviá-los para Auschwitz. Poucos adultos restaram. Nenhuma criança sobreviveu.

Foto: Eva Alterman Blay

Na terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que na adolescência aprendi a amar e respeitar, deu-se essa deportação. Não foi a única, houve outras (Blay, 2013 [i]). O curioso é que esse memorial, tão pouco visto, fica pertíssimo de um local próximo a um ponto visitado por muitos turistas, a Tour Eiffel.

Os presos amontoados no Quai, ao lado de inúmeros antigos edifícios, das janelas seus moradores podiam ver e ouvir, durante quatro dias, o desespero dos que lá ficaram em condições inimagináveis até serem deportados.

Foto: Eva Alterman Blay

Marine Le Pen, a voz da direita, nega a participação da França nessa deportação[ii].  Macron, em plena campanha eleitoral, ousou se contrapor a Le Pen e, agora presidente, convidou Netanyahu a visitar a França e participar dessa comemoração. Ousado o gesto de Macron, num importante momento em que Israel é atacada de todos os lados, pela direita, pela esquerda, etc., sionismo e antissemitismo são colocados como sinônimos. Qual a razão de se confundir um eventual primeiro-ministro israelense, que será sucedido amanhã por outro, com o direito à existência de Israel? Legitimo discordar-se das ações políticas de um governo, mas daí a negar o direito à existência de Israel como país, é na verdade uma visão  racista, antissemita. Nós, brasileiros, que vivemos a ditadura militar, nunca confundimos o Brasil com seu governo ditatorial, felizmente transitório.

Afinal, o que tem a ver o antissemitismo, o antissionismo, o racismo e o encontro entre dois governantes tão distintos? O que havia na França de Vichy, racista e xenófoba, que  perseguia os judeus – franceses ou estrangeiros? E como explicar esse encontro entre dois políticos tão distintos? O que mudou para permitir essa aproximação?

O marechal, o racismo e o “feminino eterno”

Na França, o antissemitismo, o racismo, o espírito colonialista antecediam o governo do marechal Pétain, mostra Francine Muel–Dreyfus [iii]. No governo Vichy o marechal, no governo, com os olhos voltados para o passado, pretendeu realizar a “Revolução Nacional” com a qual a França retornaria à “idade do ouro”, onde uns seriam incluídos e outros excluídos. Para o idolatrado vencedor de Verdun, os “inassimiláveis deveriam ser excluídos”. A ideologia racista, xenofóbica era prévia a Vichy e perdurou após o fim da 2ª Guerra.

Robert Badinter [iv], célebre advogado, exemplifica essa permanência lembrando o pronunciamento de Charpentier, presidente da Ordem dos advogados em 1949. Portanto, quatro anos após o fim da 2ª Guerra. Charpentier afirmava: “Na Ordem (dos Advogados) de Paris há sempre a questão judaica. Esta se agravou há alguns anos com a chegada de refugiados políticos que, com as facilidades de naturalização, entraram para a Ordem. Eles têm uma concepção de justiça diferente da nossa (…)”.

Badinter não ignora que, ao lado da xenofobia e do antissemitismo, também havia aqueles com forte apego republicano e que pregavam a liberdade, mas a política na Ordem era claramente xenófoba, evidenciada pela seguinte decisão: em 1 8 de setembro de 1940, bem no início da adesão ao nazismo, a Ordem dos Advogados determina que “Ninguém pode se manter ou se inscrever na Ordem dos Advogados (…) se não possuir a nacionalidade francesa obtida por nascimento de um pai francês” [v].

A interdição imposta aos judeus entre 1940-1944 ficava escrita através do “estatuto dos judeus”. Em Le droit antisémite de Vichy, lê-se que o estatuto se desdobra em vários capítulos como: “A qualidade do Judeu”; “O Judeu ‘incapaz‘”; “O judeu ‘não cidadão’”; “O Judeu proibido de trabalhar”;” “O  Judeu privado da nacionalidade francesa”; “A arianização dos bens”; “A arianização e as finanças no exterior”; “A exclusão dos judeus da administração pública”[vi] e assim por diante.

A Revolução Nacional, com a qual a França retornaria à “idade do ouro”, definia toda a estrutura e o comportamento da sociedade e nela um pilar fundante: a mulher. Recolocar ordem no mundo significava “retornar a uma divisão sexual rígida em que cada sexo teria funções específicas e naturais”. O marechal não estava sozinho e, como diz Francine, na sociedade de 1940, literatos, homens da Igreja e cientistas se apoiavam na noção de que era necessário voltar às desigualdades naturais, biologicamente definidas, e não construídas pela história ou pela cultura. Era a busca e o retorno do “eterno feminino”. Em um estado autoritário se podia propor e garantir a existência de um “eterno feminino” em que o destino das mulheres era a submissão e a resignação. O ar de total impotência está expresso na face de uma mulher deportada, incapaz de defender seus filhos, a família, pois era ela própria uma das inassimiláveis. Excluída dos direitos humanos, dos direitos pessoais, sua vida estava disponível para os poderosos.

Foto: Eva Alterman Blay

Daniel Halévy em 1941 [vii] afirma que o primeiro fator da “degenerescência“ da França era a “denatalidade”, ou seja, a baixa natalidade, e que seria fundamental “regenerar o instinto maternal”. A isso ele somava o “alcoolismo e o afluxo de allogènes”, o aborto, o trabalho feminino. Em suma, acata o estatuto dos judeus – que os limita até à expulsão do país, e enaltece o mundo rural e seus costumes. Em suma, Halévy via na voz do marechal “a voz de um pai e de um chefe” que lideraria a redenção da França. Raymond Aron critica a posição conservadora de Halévy (1943-1993), cheia de preconceitos, que valoriza o campesinato, hostiliza o operariado e que se volta para uma França anterior à Revolução de 1789 [viii].

Assim, qual seria o papel ideal da mulher na Revolução  Nacional?

Ou qual é seu pecado? Em que ela é responsável pela desordem?

Para a Revolução Nacional, o fundamental era ter a família como base, além da elevação da natalidade. Completa-se a estrutura com a exaltação de uma cultura feminina católica hegemônica somada a uma escola de base religiosa. Controlar essas decisões é tarefa do Estado. Impunha-se a total separação entre o masculino e o feminino em todas as atividades sociais, culturais, sexuais. Nos alicerces dessa ideologia estão as desigualdades biológicas, tidas como indiscutíveis. ”A representação de uma ordem biológica, imutável, natural, necessária, legitima a representação de uma ordem social imutável, natural e necessária” [ix]. Daí que “o retorno do eterno feminino permite pensar um mundo onde todas as desigualdades são naturais e se inscrevem na ordem eterna das coisas. Esse quadro impõe uma sociedade cuja ‘limpeza’ era obsessiva: segue a mesma lógica, para limpar o corpo social se deve rejeitar o inassimilável, o estrangeiro, o judeu”.

O autoritarismo do Estado no período Vichy estende suas leis a todas as áreas onde o indivíduo necessariamente trafega: a casa, a família, a escola, o trabalho, etc. A partir da diferença “natural” a mulher é parte do universo doméstico, festeja-se o “dia das mães”. Contrapõe-se a família ao indivíduo, a escola não é para as mulheres, e sobretudo as elites adquirem uma condição viril, hierárquica. Além do aborto ser considerado um crime contra o Estado, institui-se o exame pré-nupcial para que se garanta a defesa da raça.

Concluindo

A França de Macron reverte todos esses padrões arcaicos de dominação de um grupo alicerçado na submissão da mulher. Ele está muito perto de Raymond Aron (nas críticas que este faz a Halévy) despindo-se do culto ao rural, do ódio aos estrangeiros, da exaltação do instinto materno. Macron, ao lembrar a deportação dos judeus franceses, em 1942 , fez o seguinte comunicado: “Dans une ‘note’ à destination de la presse, l’Elysée a indiqué samedi que cette visite devait permettre de ‘rappeler l’importance de la laïcité et la lutte inconditionnelle contre toute forme d’antisémitisme’.[x]

A importante declaração de Macron traduz como ele pretende conduzir a política interna francesa, os valores que o guiarão. Do ponto de vista da política externa, ele afirma a importância de garantir Israel e o destino dos palestinos. Parece que novos ventos pairam sobre a França que se alinha à Europa moderna.

Espero que os antigos e fundamentais lemas Liberdade, Igualdade e Fraternidade se implantem definitivamente.

Foto: Eva Alterman Blay

Fontes citadas

[i] Blay, Eva Alterman. O Brasil como Destino. São Paulo, UNESP, 2013.

[ii] Liberation, 14/7/2017.

[iii] Muel–Dreyfus, Francine. Vichy et l’éternel féminin. Paris, Seuil, 1996.

[iv]  Badinter, Robert. “Peut o-on-être aocat lorsqu’on est juif em 1940-1994”, in Le Droit Antisémite de Vichy. Le genre humain. Paris, Seuil, 1996.

[v] Badinter, Robert, op. cit. 144:1946.

[vi] “Le droit antisémite de Vichy”. Le genre humain, 1996.

[vii] Daniel Halévy (1941) apud Badinter 1946.

[viii]  Raymond, Aron apud Badinter 1946.

[ix]  Francine Muel–Dreyfus, op. cit., p.20.

[x] AFP — 15 juillet 2017 à 09:51 (mis à jour à 13:12).

 

 

 

 

 

 

 


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