Livro: tradição & inovação

Marisa Midori Deaecto é professora de História do Livro na Escola de Comunicações e Arte (ECA) da USP

 18/05/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 21/05/2018 as 15:44

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Conta-se que logo após a impressão das primeiras Bíblias, no então desconhecido ateliê tipográfico de Johannes Gutenberg, situado na pequena Mogúncia (atual Mainz), seu sócio e avalista Johan Fust correu para Paris com uma dúzia de exemplares, a fim de converter em dinheiro os livros recém-impressos. No velho Quartier Latin, onde pulsava uma vida universitária e a economia do livro manuscrito medrava, a desconfiança foi enorme. Um homem germânico de posse de uma dúzia de Bíblias idênticas? Isso só poderia ser coisa do demônio! Não demorou Fust passar por Faust… e fugir de Paris. Um quarto de século mais tarde, a mesma Paris dos mestres copistas, encadernadores, livreiros e pergaminheiros, viria a ser um dos principais centros tipográficos da Europa.

Não há inovação que se imponha sem desconfianças e resistências.

A Bíblia de Gutenberg, a famosa Bíblia de 42 linhas – o fac-símile acaba de ser publicado pela editora Taschen, sob a direção de Stephen Füssel – consiste em um testemunho material eloquente dos meios e do esforço aplicado por seu criador para que aquele livro, detentor de uma revolução sem precedentes, reproduzisse, sem maiores alardes, as Bíblias manuscritas então em voga. É que a inovação técnica, para Gutenberg, não teria valor se não correspondesse à tradição, ao gosto dos leitores.

Todavia, ninguém duvidará, como bem afirma Frédéric Barbier[1], em estudo recém-publicado no Brasil, que a invenção da imprensa significou “a primeira revolução midiática” do Ocidente, ao abalar toda a estrutura do sistema de comunicação e da própria sociedade, em meados do século XV. De modo análogo, uma nova revolução no sistema de comunicação se anuncia, há pelo menos duas décadas. Passado e presente nos convidam a refletir sobre o impacto das tecnologias de informação e comunicação sobre o livro.

A maior invenção do novo milênio aparece sob a forma do livro digital, ou e-book. Os suportes eletrônicos apresentam muitas qualidades em relação aos livros: em um mesmo objeto podemos armazenar bibliotecas tão extensas que não poderão ser lidas no espaço de uma vida; eles são leves e portáteis, tanto quanto os celulares, os quais, na verdade, têm se mostrado muito mais úteis, até para a leitura; a tela é iluminada, o que permite ler em qualquer ambiente. Entre essas e muitas outras vantagens, vale dizer que o livro eletrônico não se desprendeu do livro tradicional no que toca às formas de leitura. Ele simula o barulho da folha, reconstitui a composição da página impressa e a estrutura do texto impresso. Talvez porque a tradição, no caso das práticas de leitura, seja mais resistente a mudanças do que a própria concepção do objeto. Embora o e-book pudesse ser nomeado de qualquer coisa, não fosse a força da palavra-ideia livro.

Esses suportes têm sido alvo de tantas comparações que, hoje em dia, é difícil tomar um partido seguro. Livros eletrônicos e textos digitais compõem a vida de leitores e leitoras de diferentes gerações, tão naturalmente quanto os livros e os textos impressos. Seria um erro afirmar que texto e livro se confundem, da mesma forma que não se pode demonizar nenhuma dessas mídias. Os textos são inerentes aos suportes, poder-se-ia mesmo admitir que os suportes compõem textualidades, de tal forma que o continente não se aparta do conteúdo. E todos esses elementos se integram e interagem em um mesmo sistema midiático.

No velho Quartier Latin, onde pulsava uma vida universitária e a economia do livro medrava, a desconfiança foi enorme. Um homem germânico de posse de uma dúzia de Bíblias idênticas? Isso só poderia ser coisa do demônio! Não demorou Fust passar por Faust… e fugir de Paris

Notemos que da mesma maneira que Gutenberg se esforçou para guardar no livro impresso os componentes de uma tradição manuscrita, também as novas tecnologias se esforçam para preservar o que há de melhor na tradição do impresso. As tecnologias tornaram até mesmo possível o acesso ilimitado e sem fronteiras aos livros depositados nas bibliotecas do mundo!

Então, por que ferir a tradição e forçar o tempo?

A inovação que representou o livro impresso se ancorou nas sociedades desenvolvidas, para então se difundir na direção das semiperiferias e periferias em escala mundial. O movimento é lento, sobretudo quando se trata de atingir as camadas leitoras de uma dada sociedade. Leitores se apoiam na tradição, pois as próprias instituições formadoras – desde as escolas primárias até as próprias bibliotecas – são resistentes às transformações. É preciso respeitar o tempo e as tradições de cada cultura.

O próprio mercado sinaliza essa realidade: os livros impressos superam em produção e vendas os e-books. Porém, em alguns circuitos não faz sentido insistir nos velhos e ultrapassados códices, particularmente nos setores universitários, cujas pesquisas, fortemente associadas às demandas da indústria e do consumo de tecnologias, consistem justamente em forçar o tempo e desafiar a tradição.

Não há inovação que se imponha sem desconfianças e resistências

Diante de realidades às vezes discrepantes, o que fazer? Impor uma mídia sobre a outra? Fechar as livrarias, exigir das editoras um compromisso maior com os livros eletrônicos, alterar o tempo de aprendizado dos leitores, obrigar toda uma sociedade a ler a fórceps?

Outro paralelo. Sabe-se que durante a Revolução Francesa as bibliotecas principescas e religiosas foram saqueadas, pois elas simbolizavam um passado e um regime que deveriam ser superados. O que foi feito dos livros? Eles foram acomodados em modernas bibliotecas públicas, mantidas pelos municípios. Mutatis mutandis, podemos dizer que no processo revolucionário, o caminho mais sábio é aquele que tira partido da tradição em proveito do desenvolvimento e do progresso.

É preciso converter a tecnologia para o bem da cultura. Livros impressos são ainda necessários, tanto quanto as livrarias. Eles disponibilizam materialmente um mundo ainda pouco desbravado pelos jovens leitores brasileiros, muitos deles ingressantes nas universidades. E isso não se faz em detrimento das mídias eletrônicas e dos novos suportes, elas conformam hoje um circuito paralelo e igualmente rentável.

Porém, sabemos que o sucesso da inovação no campo da leitura só é possível sobre um terreno bem cimentado de leitores. Noutros termos, não há inovação que se imponha sem uma tradição bem fundada.

[1] Frédéric Barbier, A Europa de Gutenberg. O Livro e a Invenção da Modernidade Ocidental (Séculos XIII-XVI). São Paulo: Edusp, 2018.

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