Imprensa, cobertura Rio 2016 e cultura esportiva no Brasil

Ary Rocco – EEFE

 19/08/2016 - Publicado há 8 anos
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Ary José Rocco Júnior é pós- doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e professor da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE- USP) – Foto: Divulgação/EEFE

 

Momento olímpico 1: na disputa da final da canoagem slalom, categoria caiaque individual (K1), que aconteceu na quarta-feira, 10 de agosto, o brasileiro Pedro Gonçalves, Pepê, foi o primeiro, entre dez competidores, a realizar o percurso definido para a prova decisiva. Na canoagem K1 cada competidor, entre os dez classificados para a final, percorre individualmente o trajeto da disputa. Vence aquele que cumprir a prova em menor tempo. Com 91s54, e após a realização do percurso por parte de outros dois competidores, o brasileiro liderava a competição.

O tempo feito por Pepê foi suficiente para que a equipe de jornalistas da Rádio Bandeirantes de São Paulo começasse a colocar o brasileiro como o virtual vencedor da prova. “A chance de ouro é grande”, celebrou a equipe da importante emissora de rádio, “esquecendo” que ainda restavam outros sete atletas para realizar o percurso. Ao final da prova, com a participação de todos os competidores, a frustração. Pedro Gonçalves terminou a prova em sexto lugar, sem medalha, mas com o melhor resultado de um canoísta brasileiro em toda a história da categoria K1 em jogos olímpicos.

Momento olímpico 2: após acabar em sexto lugar na final dos 50 metros livres, que aconteceu na noite de sexta-feira, 12 de agosto, o nadador brasileiro Bruno Fratus foi entrevistado por uma repórter do canal a cabo Sportv. Após sair da piscina, o atleta ouviu da jornalista a seguinte pergunta: “Sai chateado?”. Ainda decepcionado com seu resultado na prova, o nadador respondeu: “Não, estou felizão, né. Fiquei em sexto. Desculpa, né, mas…tô, bastante (feliz)”.

A resposta do nadador dividiu opiniões nas redes sociais e rendeu críticas dos comentaristas e colegas da jornalista. Ainda na madrugada de sexta para sábado, Fratus voltou a falar com a repórter e se desculpou.

Momento olímpico 3: na noite do dia 15 de agosto, uma segunda-feira, a seleção de basquete masculino da Argentina foi derrotada, na Arena Carioca 1, pela Espanha por 92 a 73. O resultado eliminou o Brasil da competição. A equipe brasileira dependia de uma vitória argentina para continuar na disputa. Logo após o final da partida, o importante portal de notícias UOL estampou a seguinte manchete: “Argentina perde para a Espanha e elimina o Brasil”.

O tempo feito por Pepê foi suficiente para que a equipe de jornalistas da Rádio Bandeirantes de São Paulo começasse a colocar o brasileiro como o virtual vencedor da prova.

Por que o portal não optou pela manchete “Espanha vence Argentina e elimina o Brasil”? A chamada do UOL, como foi colocada, insinua nas entrelinhas que a Argentina, já classificada à próxima fase do torneio olímpico e arquirrival do Brasil, não se empenhou o suficiente para derrotar os espanhóis e, com isso, provocou a eliminação precoce da seleção brasileira da competição. Detalhe: a derrota colocou a fortíssima e quase imbatível equipe dos Estados Unidos no caminho da Argentina.

Os três momentos olímpicos, mencionados acima, ilustram o tratamento dado, de forma geral, pelos principais veículos de mídia do País aos atletas e ao esporte brasileiro durante a disputa de um megaevento esportivo como os jogos olímpicos.

Ufanismo exacerbado, espetacularização do esporte e sensacionalismo no tratamento do conteúdo das matérias, desconhecimento das modalidades e da preparação e esforço que um atleta tem que despender para disputar uma competição de altíssimo nível são apenas algumas das características que permeiam a cobertura de boa parte da imprensa de um evento como o que estamos vendo agora no Rio de Janeiro.

A busca desenfreada por telespectadores, ouvintes e leitores, faz, por vezes, com que o comportamento da mídia seja prejudicial ao esporte e, por consequência, aos atletas. Nos três momentos apresentados acima foi isso o que efetivamente ocorreu.

O resultado eliminou o Brasil da competição. A equipe brasileira dependia de uma vitória argentina para continuar na disputa. Logo após o final da partida, o importante portal de notícias UOL estampou a seguinte manchete: “Argentina perde para a Espanha e elimina o Brasil”.

O brilhante e inédito resultado do canoísta Pedro Gonçalves ficou diluído pela sensação de uma suposta vitória que, na essência, nunca esteve próxima do atleta. Toda a preparação e esforço do nadador Bruno Fratus foi simplesmente desprezada pela pergunta de resposta óbvia feita pela repórter do Sportv. Já a manchete do UOL preferiu investir no sensacionalismo e na polêmica, de forma quase irresponsável, no tratamento dado ao resultado da partida entre Argentina e Espanha.

Durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, realizamos na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP) pesquisa com o objetivo de analisar o conteúdo jornalístico da cobertura realizada pelos principais jornais do País – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo – do maior evento do esporte, ocorrido na capital inglesa.

Nossa hipótese, confirmada pelos resultados da pesquisa, era a de que, em períodos de grandes eventos esportivos, o tratamento dado pela mídia ao esporte é pautado muito mais pelo espetáculo e pelo comportamento dos atletas fora das competições (entretenimento) do que pela pauta esportiva, pelo fato esportivo em si (competição).

Naquela ocasião, em um período de 45 dias – 15 dias antes do evento, as duas semanas de competição e os 15 dias posteriores aos jogos – foram analisadas 4.618 matérias que apresentaram, como pauta principal, o megaevento realizado em Londres.

Desse total, 1.319 (29,46% do total) foram classificadas, pelo método da análise de conteúdo, como matérias de pauta esportiva. Por outro lado, 2.241 (50,06%) apresentaram como foco principal, na abordagem jornalística dos veículos estudados, pautas relacionadas ao caráter espetacular dos jogos e ao comportamento dos atletas.

De cada duas matérias publicadas pelos três principais jornais impressos do País, durante os Jogos Olímpicos de Londres 2012, uma destacava aspectos espetaculares ou comportamentais, deixando a abordagem esportiva, de competição, em segundo plano.

Outro resultado interessante levantado pela pesquisa, e que ilustra bem o tratamento dado ao esporte, de uma forma geral, pela imprensa no Brasil, é a distribuição de pautas por modalidade.

O brilhante e inédito resultado do canoísta Pedro Gonçalves ficou diluído pela sensação de uma suposta vitória que, na essência, nunca esteve próxima do atleta. Toda a preparação e esforço do nadador Bruno Fratus foi simplesmente desprezada pela pergunta de resposta óbvia feita pela repórter do Sportv. Já a manchete do UOL preferiu investir no sensacionalismo e na polêmica, de forma quase irresponsável, no tratamento dado ao resultado da partida entre Argentina e Espanha.

Em Londres, por exemplo, das 4.618 matérias estudadas, 602 (13,04% do total) apresentaram o futebol como tema principal, sendo que, até aquele momento, a modalidade mais popular do País havia colaborado com apenas 6,45% das medalhas conquistadas pelo Brasil em toda a história dos jogos olímpicos. Detalhe: nenhuma de ouro, nem no masculino, nem no feminino.

Já as pautas relacionadas ao voleibol (quadra e praia), judô e vela, que, somados, contribuíram com 51,85% das medalhas obtidas pelo País, representaram, em Londres 2012, apenas 14,85% (686) das pautas dos principais jornais do Brasil.

Os grandes eventos esportivos, e seu universo, fazem parte, hoje, da cultura pop global. Cultura voltada para o entretenimento e consumo. Os meios de comunicação de massa contribuem, nesse contexto, para a construção de uma realidade onde os signos de consumo substituem, de fato, a pobre realidade esportiva do País.

Evidente que todos sabemos que os principais veículos de comunicação que cobrem os jogos olímpicos no Brasil são empresas privadas que, como tal, dependem da audiência do público e de seus patrocinadores. Por outro lado, como veículos de comunicação social, têm o compromisso de informar e de contribuir com o aprendizado e o crescimento da sociedade como um todo.

A questão central, no caso da cobertura de megaeventos esportivos realizada pela imprensa brasileira, é que há um descompasso, um desequilíbrio exacerbado, entre as preocupações comerciais e o compromisso social no tratamento dado ao esporte pelos principais veículos de comunicação.

Agindo assim, os principais veículos que cobrem o esporte em nada contribuem para a construção de uma cultura esportiva no Brasil. Cultura que, a todo instante, esses mesmos veículos insistem em cobrar, de forma insistente, de torcedores, dirigentes e esportistas.

 


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