Governador Doria, não seja um exterminador da ciência

Por Alicia J. Kowaltowski, professora do Instituto de Química da USP, e Paulo A. Nussenzveig, professor do Instituto de Física da USP e colunista da Rádio USP

 28/10/2020 - Publicado há 3 anos
Alícia Kowaltowski – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Paulo Nussenzveig – Foto: IEA/USP
João Doria (PSDB-SP) gosta de se diferenciar de Jair Bolsonaro ao afirmar que se baseia na ciência, como o fez em 21 de setembro: “O que determina todas as ações do governo de São Paulo é a ciência e a medicina. Não é pressão política, nem eleitoral, nem econômica, nem pessoal, nem de amigos, nem de familiares: é a ciência e a saúde”.

Durante a campanha de 2018, afirmou para a hoje senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) que não somente preservaria os recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) mas também os aumentaria. Em 2019, ao lançar o programa Ciência para o Desenvolvimento, discursou: “É uma obrigação para um governo responsável apoiar a pesquisa e a inovação”.

Mas ações recentes do governador paulista indicam que ele precisa se deixar convencer por seus próprios argumentos. Primeiro encaminhou o projeto de lei 529/2020, que, dentre outras medidas, propunha remover mais de R$ 1 bilhão das universidades estaduais e da Fapesp. A união de partidos ideologicamente opostos permitiu defender a ciência da ameaça desse projeto.

Mas veio nova ofensiva governamental, no projeto de lei 627/2020, que prevê cortar 30% (quase R$ 500 milhões) do orçamento da Fapesp em 2021. Sua aprovação fragilizaria muito a pesquisa no Estado, pois fração significativa dos recursos já está comprometida com projetos científicos de longo prazo. O artigo 271 da Constituição estadual ordena que 1% da receita tributária do Estado seja repassada à Fapesp “para sua privativa administração”. Isso reflete um reconhecimento da importância de investimentos na área.

Para alterar um artigo da Constituição, seria necessária uma expressiva maioria parlamentar. O governador recorreu a uma disposição transitória, criada por emenda na Constituição federal, a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem). Sorrateiramente, incluiu numa das 1.075 páginas de sua proposta a previsão de descumprir a Constituição paulista, repassando apenas 0,7% da receita à Fapesp. Note-se que, em 2 de abril deste ano, o STF julgou inconstitucional a aplicação da Drem para reduzir o orçamento da Faperj, no Rio de Janeiro.

A Fapesp não é apenas a maior agência de apoio à ciência do Estado, mas também do Brasil. Financia pesquisa básica, essencial para inovação, e também ciência em empresas e em parcerias com o setor privado, avançando o conhecimento, o desenvolvimento e a economia.

Sem a Fapesp, não saberíamos como o zika promove a microcefalia, não teríamos automóveis com modernos motores flex, não identificaríamos o novo coronavírus no País e não existiriam respiradores de baixo custo para enfrentar as consequências de sua infecção. O avanço científico indubitavelmente impulsiona a economia, sendo mais fundamental do que nunca neste momento.

Esperamos que o governo reveja sua posição, mas as evidências até o momento não são auspiciosas. Ainda durante as discussões do PL 529, o secretário de Projetos, Orçamento e Gestão, Mauro Ricardo Costa, disse que os cortes não prejudicariam a ciência, que a Fapesp não executa seus orçamentos e tem recursos sobrando. Suas afirmações são categoricamente refutadas pelos cientistas, pois, nos últimos sete anos, a Fapesp gastou R$ 450 milhões a mais do que recebeu.

Assim como de muito perto a Terra parece plana, numa contabilidade rasteira, a Fapesp reduziu desembolsos em tempos recentes. Porém, olhando com o devido distanciamento, a Terra não é plana e os recursos da Fapesp estão comprometidos com investimentos de longo prazo.

Nem mesmo na ditadura militar houve tamanha ameaça obscurantista, inconstitucional e, acima de tudo, imoral ao orçamento da Fapesp e à sua autonomia. O primeiro ataque de Doria foi derrotado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Senhor governador, tome decisões determinadas pela ciência, evitando novas derrotas na Alesp (pelo obscurantismo), na Justiça (pela inconstitucionalidade) e nas urnas (pela imoralidade): desista já de cortar o orçamento da Fapesp.

(Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 27/10/2020)


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