É a autonomia, estúpido!

Por Paulo A. Nussenzveig, professor do Instituto de Física da USP e colunista da Rádio USP

 16/12/2020 - Publicado há 3 anos
Paulo Nussenzveig – Foto: IEA/USP
Em 1992, um jovem governador do estado de Arkansas tentava se eleger presidente dos Estados Unidos, enfrentando um presidente em busca de reeleição. George H. W. Bush desfrutou de grande popularidade no ano anterior à eleição, em função da primeira Guerra do Golfo. O estrategista de campanha de Bill Clinton, James Carville, cunhou a frase “é a economia, estúpido!” para chamar atenção para o que seria o foco de debate da campanha. Clinton tornou-se o 42º presidente dos EUA no ano seguinte.

O ano zero da pandemia aproxima-se de seu final e, mais uma vez, precisamos proteger a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) da fixação destrutiva do executivo estadual. Depois de uma forte mobilização de cientistas e da sociedade evitar a desarticulação das universidades estaduais e da Fapesp, rejeitando os confiscos de “sobras orçamentárias” no PL 529/2020 de João Doria, o governador voltou à carga com a proposta de lei orçamentária, PL 627/2020. Dessa vez, a tara do governador é por explorar uma disposição transitória, aprovada como emenda à constituição federal em 2016, que permite “desvincular receitas de estados e municípios” (DREM, inspirada na DRU). Essa disposição autoriza a descontar até 30% das receitas para efeito de cálculo de orçamentos vinculados. Pela primeira vez na história do estado, João Doria propôs aplicar a desvinculação máxima ao orçamento da Fapesp, cortando R$ 454 milhões do orçamento de 2021.

A comunidade mobilizou-se novamente, com diversos artigos em jornais e em mídias sociais. Em 25 de novembro, ciente da repercussão negativa de sua proposta e de olho no segundo turno da eleição para prefeito na capital, João Doria fez pronunciamento público, gravado em vídeo, ao lado do presidente da Fapesp, Marco Antônio Zago e anunciou: “nós não vamos aplicar a DREM, que poderia gerar algum prejuízo à Fapesp”. Com seu candidato Bruno Covas eleito, aparentemente Doria esqueceu de mais essa promessa e seu projeto orçamentário avançou na Alesp, em 11 de dezembro, com a rejeição às emendas que suprimiam a aplicação da DREM.

Às pressas, foi organizado um “abraço simbólico” na sede da Fapesp, respeitando recomendações de distanciamento e uso de máscaras, que teve boa cobertura na imprensa. Rapidamente, surgiram declarações do governador e de seus subalternos, como seu líder na Alesp, afirmando que não haveria cortes de recursos, que a DREM seria mantida mas os recursos seriam recompostos através de decretos. Essas afirmações apenas aumentam a gravidade do ato pretendido. A disposição transitória na constituição federal tem o propósito de oferecer alternativas a estados e municípios em dificuldades financeiras, para lidar com os orçamentos excessivamente “engessados” por atenderem a muitas demandas de corporações. Ora, se os recursos serão repassados integralmente, segundo as promessas de credibilidade duvidosa de Doria e seus subalternos, não há qualquer justificativa para manutenção da DREM no PL 627/2020!

Esse é o momento de lembrar que o artigo 271 da constituição estadual, que Doria tem tanta fixação em burlar sem buscar a maioria legislativa regimental que precisaria para alterar, prevê: “O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico”. Se o orçamento da Fapesp será recomposto para atingir 1% da receita tributária, a aplicação da DREM seria inócua e, portanto, não haveria interesse do governo em manter um dispositivo de constitucionalidade questionável em seu projeto de lei. Lembremos, aliás, que o STF já declarou inconstitucional a aplicação da DREM ao orçamento da Faperj, no Rio de Janeiro.

Por que correr risco de questionamento judicial se o governo pretende destinar 1% à Fapesp? A pergunta retórica encontra resposta em seis palavras: “como renda de sua privativa administração”. Ao destinar, “magnanimamente”, os 30% faltantes do orçamento da Fapesp por decreto, o governo passa a ter ingerência inconstitucional na sua administração. Doria busca usurpar poderes que não lhe são conferidos, inaugurando uma prática que, caso não seja exemplarmente rejeitada, dará início ao desmantelamento de uma das instituições mais preciosas de nosso estado. A Fapesp precisa ser mantida ao abrigo dos políticos-governantes de plantão. É isso que permite manter sua excelência, mundialmente reconhecida, com uma administração que, por estatuto, não pode custar mais de 5% de seu orçamento. É a autonomia, estúpido!


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