Copa de 2018 e a Nádenka de Tchekov

José C. Marques é integrante do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) do Dpto. de História da USP

 08/01/2018 - Publicado há 6 anos
José Carlos Marques – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

No conto “A brincadeira”, do russo Anton Tchekhov, o narrador diverte-se ao lado de Nádenka ao descer de trenó pelas encostas de um morro coberto pela neve e pelo gelo invernal. Durante a descida, o próprio narrador diz a frase “Eu te amo, Nádia” em meio aos “uivos do vento” e aos “zumbidos das lâminas do trenó”, instaurando-se a dúvida no pensamento de Nádenka: ela não tem a certeza se ouviu de fato a declaração de amor ou se apenas a imaginou em sua mente. Inúmeras outras descidas de trenó acontecerão durante aquele inverno, e a incerteza da frase há de ser a mais bela recordação da vida daquela moça.

Estamos em ano de Copa do Mundo de futebol, e a história repete-se mais uma vez: a imprensa brasileira, historicamente, costuma oscilar entre o ceticismo petulante e o otimismo eufórico diante do que pode ser a prestação da Seleção Brasileira na competição mais midiática do esporte mundial. E para 2018, se levarmos em conta o movimento ainda tímido dos meios de comunicação nacionais até agora, deveremos ter pela frente um semestre de muita expectativa em torno do chamado hexacampeonato do Brasil no Mundial da Rússia. Ou seja, voltaremos a descer de trenó pelas encostas de um morro gelado, fazendo com que a Seleção Brasileira imagine que a amemos ou, ao contrário do narrador de Tchekhov, que criemos para nós mesmos a ilusão deste amor.

Para tanto, os meios televisivos, que adquirem os direitos de transmissão deste megaevento esportivo a preços estratosféricos, demonstram não ter alternativa: é preciso valorizar o produto, de forma a cativar anunciantes e patrocinadores – e, em última instância, as audiências. Nesta valorização do “produto”, tanto a Copa do Mundo em si como a própria Seleção Brasileira passam a ser a mina de ouro dos meios eletrônicos. Neste processo, anunciar que o “escrete canarinho” é favorito ao título faz parte das estratégias marqueteiras do universo midiático. E mostrar que o país sede do evento pode ser amigo e acolhedor faz parte das promessas contidas no cardápio a ser oferecido ao público.

Prova disto é o que a Rede Globo tem protagonizado desde o final de março de 2017, quando o Brasil garantiu a classificação para o Mundial de 2018 com quatro rodadas de antecedência nas eliminatórias sul-americanas: na mesma noite/madrugada em que carimbou o passaporte para a Copa, a TV Globo já colocava no ar uma vinheta com quatro músicos e uma cantora naquilo que podemos imaginar que seja um cenário típico de algum aspecto da cultura russa. O grupo entoava, igualmente em russo, a vinheta da emissora divulgada em épocas de Copa. Já no final do ano passado, o canal iniciou o projeto de tornar a Rússia mais familiar para o público brasileiro, e equipes de reportagem têm trazido, a cada semana, a cultura do país.
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Durante a descida, o próprio narrador diz a frase “Eu te amo, Nádia” em meio aos “uivos do vento” e aos “zumbidos das lâminas do trenó”, instaurando-se a dúvida no pensamento de Nádenka: ela não tem a certeza se ouviu de fato a declaração de amor ou se apenas a imaginou em sua mente

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As surpreendentes exibições da Seleção Brasileira depois que o técnico Tite assumiu o comando do time, em junho de 2016, acabaram criando o clima de euforia de que os meios de comunicação tanto gostam. Há uma compreensão geral de que o público brasileiro médio gosta das modalidades e das equipes que vencem – daí as boas audiências em torno do automobilismo na era Ayrton Senna ou do tênis na fase áurea de Gustavo Kuerten, só para citar alguns exemplos. E ainda que o futebol seja um elemento à parte no imaginário esportivo nacional, é sempre melhor vender a ilusão de que o tal “hexa” mundial poderá ser obtido em 2018.

Mesmo que os meios de comunicação procurem criar esse clima de euforia e de assepsia (e, nesse processo, nada melhor do que um jogador multimidiático como Neymar e suas descidas flutuantes de trenó com Bruna Marquezine), resta saber o que acontecerá quando a Seleção Brasileira tiver que exorcizar a derrota de 7 x 1 para a Alemanha na Copa de 2014.  As lembranças daquele jogo malfadado certamente virão à tona mais cedo ou mais tarde. E o pêndulo que oscila entre a glória e a tragédia (ou vice-versa) se anuncia mais uma vez ad infinitum: de uma Copa malograda disputada em casa, o Brasil é anunciado agora como o grande favorito para 2018.

De certa forma, o trauma da goleada sofrida diante da Alemanha no último Mundial tem sido posto de lado pelos meios televisivos – afinal de contas, é preciso blindar o escrete e fazer-nos crer que o hexa é possível. Outra questão que tem sido colocada à parte são os aspectos mais adversos da cultura russa com relação ao imaginário que se tem dela no Brasil. Se em 2017 foi celebrado o centenário da Revolução de 1917, fenômeno que mais tarde acabaria por dar lugar à criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, parece-nos que um processo também asséptico em torno da herança comunista tem sido colocado em marcha.
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As surpreendentes exibições da Seleção Brasileira depois que o técnico Tite assumiu o comando do time, em junho de 2016, acabaram criando o clima de euforia de que os meios de comunicação tanto gostam

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Exigir que os meios de comunicação mirem para a cultura do outro de forma mais “antropológica” e menos midiática, ou com um olhar mais de viajante do que de turista, não é tarefa fácil. Por isso, as tradições natalinas russas e o cotidiano de Moscou têm comparecido de forma curiosa nas telas da TV Globo, por meio de um tratamento que se alterna entre o exotismo da diferença e o elogio da semelhança.

Em vez disso, seria interessante se buscássemos perceber por que a Rússia, um século e meio antes de organizar a Copa de 2018, conseguiu produzir uma leva de autores seminais para se compreender a literatura em prosa mundial – e aí basta citar ao menos cinco autores nascidos no Século XIX, casos de Nikolai Gogol, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói, o já citado Anton Tchekhov e Máximo Gorki. A potência da narrativa destes autores certamente será útil para estabelecermos relações entre a ficção e a narrativa que a Seleção Brasileira poderá oferecer num país que nunca sediou um Mundial de futebol.

Estas considerações, obviamente, têm a ver com a cobertura embrionária que os meios de comunicação brasileiros têm produzido até agora em torno da Copa de 2018. Não haverá neve no final de primavera e no início do verão durante o Mundial da Rússia, e os uivos do vento terão como companhia não mais os zumbidos das lâminas dos trenós, mas as travas das chuteiras sobre os gramados lisos e verdes. A Seleção Brasileira, a nossa Nádenka da ficção, terá a ilusão de nosso amor enquanto mostrar que pode superar o trauma dos 7 x 1. Ela sempre estará ao nosso lado pronta para ouvir frases de amor que podem nunca ter sido proferidas de fato. E nós voltaremos a insistir que dizemos “Eu te amo”, mesmo que isto não passe de uma brincadeira.

 

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