Agonia e cultura moderna

Felipe Ziotti é pesquisador CPq-USP e editor do grupo Theoretical Practice (Univ. Adam Mickiewicz-Polônia)

 09/02/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 19/02/2018 as 16:36

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Felipe Ziotti Narita – Foto: Arquivo pessoal

 

À luz do centenário de O conflito da cultura moderna, do filósofo alemão Georg Simmel (1858-1918), sua crítica da cultura ainda mobiliza aspectos fundamentais da modernidade. A incorporação de Simmel junto à teoria social no Brasil tem sido fértil e significativa nesse sentido – para ficar nos trabalhos mais recentes, lembro de Leopoldo Waizbort, Reinaldo Furlan, Frederic Vandenberghe e Arthur Bueno. O curto livro de 1918, conduzido em andamento de ensaio, sugere uma dimensão paralela à crítica da cultura ali contida: o esquema de uma pequena filosofia da história subjacente ao diagnóstico de época. O entrelaçamento entre a estruturação da temporalidade e a teoria social sublinha as fraturas do contemporâneo na instituição de horizontes coletivos.

Diversas preocupações com uma filosofia e uma teoria da história travejam a obra de Simmel. Desde discussões sobre o tempo histórico até problemas teóricos pensados no registro do neokantismo, nos textos de 1905 e 1907, o afastamento em relação ao realismo histórico situa a discussão em eixos epistemológicos demarcados pela crítica do conhecimento como um “espelho do acontecido” (Spiegelbild des Geschehenen). Uma linha de força, contudo, parece montada no percurso teórico: a correlação entre o contemporâneo, como realidade vivida (gelebte), e sua síntese como história. No ensaio de 1918, o problema da história é o processo de constituição da cultura tensionado por antagonismos internos, indicando um pressuposto para a abordagem do mundo da vida (na esteira de preocupações mais amplas da Lebensphilosophie).

A contraposição fundamental entre vida e forma demarca a tônica da análise deste último Simmel. A vivência instituída e suas formas, fixando estruturas objetivas e normativas (Verfassung) ancoradas em expressões (arte, religião, moral etc.), são elas mesmas ultrapassadas pelas transformações agitadas (ruhelos) do mundo da vida. Uma dinâmica de aceleração, certamente, mas sobretudo uma imagem de formas desabrigadas em relação a valores plenamente fundados. O sociólogo Tiziano Telleschi (Universidade de Pisa), organizador de coletânea que deve ser publicada ainda em 2018, tem razão ao afirmar que a importância do texto reside na capacidade de elaborar a consciência histórica de um processo vacilante em um horizonte de certezas infundadas. A estruturação do contemporâneo, então, é aberta a uma conflitividade entendida como espécie de destinação essencial da vida histórica.

À luz do centenário de O conflito da cultura moderna, do filósofo alemão Georg Simmel (1858-1918), sua crítica da cultura ainda mobiliza aspectos fundamentais da modernidade.

O contemporâneo é muito contraditório para que fiquemos nele, afirma o autor. A forma requer uma validade capaz de instituir o mundo da vida e uma normatividade para além de sua contingência. Se a vida é condicionada ao movimento e à busca de efetividade (Wirklichkeit) nas formas, essa inquietação assinala um destino trágico da cultura. A autonomização (Selbständigkeit) dos parâmetros da cultura confronta o fluxo vital com o campo instituído de valores, de modo que há um auto-entendimento da cultura moderna como processo engendrado por um campo movediço em que as antigas formas não são mais satisfeitas em si. O confronto entre o espírito (Geist) e as formações autonomizadas indica uma espécie de dualismo sobre o qual o processo histórico da cultura adquire movimento circunscrevendo um regime de tendências agonísticas, já que as forças da vida e ordem tornam ambivalentes as formações culturais emergentes.

Morte e devir (Werden), vida e forma, fluxo das vivências e suas objetivações externas (Äußerung): a mudança dos valores e de suas formas, para Simmel, encobre uma inquietação fundante do processo histórico – articulado justamente pela contradição das formas da vida instituída. O dinamismo criativo (schöpferische) da cultura só é histórico na medida em que pressupõe, de maneira subjacente às alterações exteriores das formas, relações de sentido vinculadas à expansão da vida. Expansão marcada pela ambivalência valorativa dos novos tempos, enfatizando o antagonismo entre individualização e vida coletiva (Verallgemeinerung) em um mundo da vida cujos conteúdos de socialização não cabem nas formas de cultura realizadas. Há, portanto, uma contradição fundamental entre as múltiplas especificidades (individualidades) da vida moderna e o estatuto problemático das formas fixadas de referência coletiva (esquemas gerais de nivelamento). Simmel analisa, nesse sentido, o papel do casamento, do erotismo, da prostituição e mesmo o estatuto da religião na vida moderna (a bem da verdade, todos problemas morais recorrentes nas preocupações do fim de século e do começo do século 20).

Como processo histórico da cultura, as transformações materiais e espirituais e sua problemática correspondência diante da multiplicidade das vivências assinalam uma experiência histórica de indeterminação. Longe de um evolucionismo ou de uma causalidade linear, o processo histórico da cultura é um movimento engendrado pela oposição de forças essenciais da formação direcionadas pelo desenvolvimento, resolução e re-emergência (Neuentstehung). Oposições, portanto, internas a um processo que parte da animalidade genérica da espécie até sua efetivação nas formações do espírito.

A história articula épocas a formas culturais, fixando e dissolvendo unidades conceituais das quais são derivadas configurações sociais mais amplas. O ser (uno), a natureza, deus e a racionalização, como figuras e momentos formais do longo processo da cultura, indicam uma sucessão de imagens de mundo na medida em que instituem um comum capaz de integrar as estruturas sociais e suas especialidades. O conflito da cultura moderna não é uma sobreposição de formas (conforme seus contornos generalizáveis em épocas anteriores), mas uma diluição da própria efetividade da forma. Se a análise do estético é fundamental (vide as considerações de Simmel sobre o expressionismo, lido como manifestação imediata de conteúdos vitais, dissolvendo nexos de verossimilhança entre causa e efeito), no limite, a unidade conceitual é danificada pela invalidade de formas capazes de abrigar e constituir mediações do fluxo da vida.

O ensaio de 1918 é parte de uma conjuntura em que o agonismo da cultura moderna e o problema dos valores da vida instituída, em diversas dimensões, também tangenciavam os textos de nomes como Max Scheler, Husserl e Huizinga. Os ecos da guerra são evidentes, bem como o conjunto de preocupações que, nos textos finais de Simmel, compõem o quadro mais amplo de uma “metafísica da vida” e de suas “estruturas formais”, tal como os textos reunidos no volume Visão da vida (Lebensachauung). As fraturas do contemporâneo, construídas sobre a luta agonística das formas de cultura, volatilizam o horizonte de expectativas. Não se trata, em Simmel, de mera atualização de uma forma emergente sobre os escombros acumulados, mas de um desacoplamento do contemporâneo em relação aos itens tradicionais e seus conteúdos fixados. A ponte entre o antes e o depois, afirma Simmel, foi dissolvida (abgerissen) – a rigor, abruptamente demolida.

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