A roleta-russa da avaliação de docentes

Por Tibor Rabóczkay, professor titular aposentado do Instituto de Química da USP

 17/04/2020 - Publicado há 4 anos
Tibor Rabóczkay – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
Um frenesi avaliatório se abate sobre a universidade pública – avaliação institucional e pessoal. Contudo, é imperativo lembrar que ninguém pode ser avaliado em itens cuja satisfação não dependa inteiramente dele mesmo. Isso nos põe diante da esdrúxula situação de a avaliação de um docente-pesquisador universitário não ser válida, justamente, em seus três principais campos de atividade: docência, pesquisa e extensão. Por quê?

Comecemos com o trabalho científico. Não se pode avaliar um acadêmico por suas realizações em pesquisa científica, quando elas dependem de verbas cuja alocação é decidida por assessores ocultos. Com base nos pareceres desses assessores, as agências de fomento decidem a concessão – ou não – da verba para a aquisição do material necessário. A experiência mostra que esses pareceres frequentemente carecem de fundamento científico, de boa-fé ou mesmo de isenção.

Isso é pouco conhecido do público. Ninguém, ou poucos, tem a coragem de revelar o caráter frequentemente malévolo desses pareceres, visto que um conflito com a direção e colaboradores das agências pode significar o fim da carreira de pesquisador.

Dinheiro à míngua, a situação se tornou mais complexa. Uma conferencista assessora da Fapesp revelou, por ocasião do evento Marco Inicial da SBEE (Sociedade Brasileira de Eletroquímica e Eletroanalítica), sediado na UFABC em 2017, que, ao receber uma solicitação de auxílio ou bolsa à financiadora, uma comissão de algumas pessoas procede a uma análise preliminar. E como a conferencista admitiu, com critérios subjetivos se decide se é dado prosseguimento à solicitação ou já se recusa de início.

É isto, o pesquisador investe meses elaborando um projeto científico e levantando orçamentos, e em alguns minutos um grupo, com critérios subjetivos, decide se o pedido será enviado à assessoria oculta ou morrerá ali mesmo. Diante de objeções subjetivas, obviamente, o solicitante tem pouca defesa. Também ocorre que um projeto, eventualmente, percorra o caminho burocrático todo e receba pareceres favoráveis dos assessores. Mesmo assim, já sucedeu a comissão de área, numa previsão com a percepção extrassensorial de cartomantes, recusar a concessão de recursos, pois “o trabalho não teria impacto”.

No que diz respeito à área de ensino e educação profissional, o docente pode ter um papel mais relevante. Entretanto, também nessas atividades o resultado não depende unicamente de seus esforços e suas habilidades. O professor trabalha o material humano que recebe após o crivo do vestibular. Um crivo bastante falho a partir do momento em que o exame de habilitação – que exigia uma nota mínima nas matérias – foi substituído pelo exame de classificação – cuja única exigência é não tirar uma nota zero.

Somem-se a isso os problemas originados por uma pedagogia leniente, superprotetora, que, ao retardar o amadurecimento e a independência do jovem, faz com que ele inicie sua jornada no ensino superior completamente perdido e, talvez, chocado com a mudança de ambiente em que ele perde o status usufruído em seu mais restrito ambiente colegial. Ou com a mudança do tipo de professores, “novos”, que os preparam a uma vida profissional, em vez de programá-los para os exames vestibulares (honra às exceções que ensinam a pensar). Não há disciplinas introdutórias que tenham por meta facilitar a adaptação do calouro à vida universitária, ao pensamento e método científicos, ao enfrentamento de problemas cuja solução não está no final da apostila.

Claro, estamos falando da média. Há alunos devidamente esclarecidos, conscientes de suas metas e, sobretudo, comprometidos com a própria formação profissional. Esses rapidamente se integram, exercendo, inclusive, atividades extracurriculares, como a de iniciação científica. Contudo, a classe que o docente enfrenta é heterogênea a ponto de limitar as possibilidades da díade ensino/aprendizado. Os “especialistas” externos, que “conhecem” o problema e são prolixos em dar conselhos em matérias jornalísticas sobre como ensinar, dizem que o professor deve saber motivar os alunos. Porém, para uma sala heterogênea, com algo ao redor de 100 alunos, de classe social, cultura familiar, valores intelectuais e éticos, condições econômicas e formação prévia diversos, dessemelhantes, o discurso científico, por mais hábil que seja, dificilmente será incentivador a todos. Diante de grupos grandes, o discurso estimulante é o político ou o religioso, obviamente, ambos inadequados no ensino profissional. Um professor cientista, habituado ao raciocínio objetivo e restrito a trabalhar com fatos, com razão pressupõe que o estudante já venha com motivação.

Atividades de cultura e extensão talvez sejam as que mais estão ao alcance do docente/cientista. Mesmo assim, não dependem exclusivamente dele. Se implicar verbas do departamento, terá que conseguir aprovação de uma instância complexa e complicada. Não é incomum ter que batalhar com os que não fazem e não querem que outros façam. Até para ministrar cursos ou palestras para leigos, divulgando a ciência, dependerá de ter audiência, fator independente do proponente.

A epígrafe melodramática da matéria, porém, não vem só dessas constatações. Os idealizadores da avaliação podem ter sido imbuídos das melhores intenções – talvez. Entretanto, acabam criando um instrumento cujo emprego, nessa época de obscurantismo e ataque à universidade pública, pode facilmente ser desvirtuado e transformado em instrumento persecutório interno e externo. Isso já se deu durante o governo militar. Contudo, o ataque à universidade pública e o obscurantismo nunca foram tão violentos como na atualidade.

A avaliação, ainda que interna, gerará repercussão externa, tal qual observamos com a infame lista, elaborada pela reitoria da USP e vazada a um jornal, há aproximadamente três décadas. Lista que, numa instituição de ensino, considerava “improdutivos” aqueles que, concentrando suas atividades no ensino e na educação profissional, não tivessem publicado artigos em determinado tempo (arbitrário). Conflitos internos se tornarão motivos de crítica e a imagem da instituição, assim como de seus pesquisadores, será afetada. Sem contar o efeito deletério sobre a saúde das pessoas – tópico cada vez mais considerado até no ambiente da empresa privada.

Resumindo: uma avaliação tendo por base critérios que escapam ao controle do avaliado, além de ilógica, carente de ética, não só contribuirá para um ambiente de trabalho tenso, doentio, estressante, gerando circunstâncias pouco adequadas à inovação e completamente antagônicas à criatividade, mas poderá servir, no futuro, de base para uma “limpeza” ideológica do corpo docente e de outros trabalhadores da instituição pública. Urge, consequentemente, restabelecer e garantir a plena liberdade acadêmica que possibilitou à nossa universidade pública conquistar o destaque mundial.

 


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