A questão dos refugiados – um colapso humanitário

Maria Luiza Tucci Carneiro – FFLCH

 16/09/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 25/04/2018 as 10:44

Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora e coordenadora do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação, da FFLCH-USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora e coordenadora do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da FFLCH-USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

O movimento emigratório que abala a Europa nos dias atuais tem sido interpretado por alguns como um “colapso humanitário”, por outros como um “grupo de risco”. Milhares de refugiados e imigrantes têm entrado clandestinamente na Europa através da Grécia, Macedônia e Itália, fugindo da Síria, Iraque e Afeganistão. Movidos pelo desespero, tentam alcançar a Alemanha, Suécia, França e Inglaterra.

Critica-se a passividade de alguns países da União Europeia diante das milhares de mortes no Mediterrâneo, sendo raras as soluções para o acolhimento das centenas de crianças, jovens, adultos e idosos. Muitos morrem em pleno mar, sem conseguir chegar em terra firme, dadas as péssimas condições dos barcos clandestinos que comercializam “promessas de salvamento”.

Para as autoridades dos países de destino os refugiados são considerados como “grupo de risco”, pois colocam em perigo a economia, a composição étnica da população e a segurança nacional abaladas pelo terrorismo. Desta vez, os refugiados não são judeus como aconteceu entre 1933-1945 sob a ocupação nazista, e sim cidadãos que fogem das violências perpetradas pelos regimes ditatoriais, principalmente no caso dos sírios. Eles querem entrar na Europa; enquanto os judeus expulsos pela ocupação nazista, queriam sair da Europa.

Tradicionais estereótipos racistas e de discriminação são ainda hoje acionados pelas autoridades, que não aprenderam a lidar com as diferenças e a expressar solidariedade, valores tão caros aos Direitos Humanos. Portanto, os estudos sobre a Diáspora Judaica no século 20 podem ajudar a encontrar novas formas institucionais (leia-se ações políticas humanitárias)  que ofereçam soluções efetivas para estes “novos atores coletivos transnacionais num mundo globalizado”, como muito bem sugeriu Bernardo Sorj em seu artigo Diáspora, Judaísmo e Teoria Social.[1]

Este cenário dramático, a meu ver, repete políticas intolerantes, cenas e emoções (guardadas as suas dimensões) vivenciadas pelos judeus refugiados do nazismo que, entre 1933-1950, vagaram por vários países da Europa sem rumo certo, sem expectativas de vida e sem documentos. Essas duas situações – dos sobreviventes do Holocausto e dos refugiados hoje – nos preocupam tendo em vista as lições do passado. São fenômenos que guardam suas singularidades considerando-se as diferenças entre os regimes totalitários e os processos de globalização/transnacionalização que interferem nos movimentos de massa deste século 21.

Critica-se a passividade de alguns países da União Europeia diante das milhares de mortes no Mediterrâneo, sendo raras as soluções para o acolhimento das centenas de crianças, jovens, adultos e idosos. Muitos morrem em pleno mar, sem conseguir chegar em terra firme, dadas as péssimas condições dos barcos clandestinos que comercializam “promessas de salvamento”.

Tomamos aqui como referência a condição diaspórica dos judeus poloneses de 1950, nos primeiros anos do pós-guerra. Naquele momento, em plena Guerra Fria, milhares de ex-prisioneiros dos campos de concentração e deslocados de guerra buscavam por suas famílias, seus lares e suas identidades estilhaçadas. Muitos traziam no braço a tatuagem recebida em Auschwitz como sinal de que haviam sido marcados para morrer, ou a palavra ápatrida em seus passaportes.

Dentre esses estavam milhares de alemães, poloneses, austríacos, húngaros e romenos, cujas vidas haviam sido esfaceladas pelas ações genocidas da Alemanha nazista e países colaboracionistas. Sem querer retornar aos seus países de origem, centenas de judeus vislumbravam a  Palestina e, posteriormente, o Estado de Israel como a Terra Prometida onde (re)encontrariam a paz e a sua identidade judaica.

Outros, optaram por viver em países onde as comunidades judaicas estavam melhor estruturadas como Estados Unidos, Argentina e Brasil. O fato de existir um elo familiar em algum lugar era o suficiente para definir as escolhas, pois a maioria sentia-se perdida, sem referências. Segundo Safran, estudioso das diásporas, interfere aqui o sentimento de solidariedade que “atravessa as fronteiras dos Estados nacionais nos quais se encontram as diásporas”.[2]

Aqueles que vieram para o Brasil integraram um dos mais importantes fluxos emigratórios da história do Brasil contemporâneo enquanto um dos segmentos da Diáspora Judaica que marcou o século 20. Obrigados a deixar sua pátria-mãe, milhares de refugiados e/ou exilados, deslocados de guerra e sobreviventes do Holocausto chegaram ao Brasil entre 1933-1950. Madri, Lisboa, Tânger e Xangai  eram considerados como espaços de trânsito, pontos de passagem.

Muitos optaram pelo exílio temporário seguindo, após o término da guerra, para os Estados Unidos, França, Argentina, Chile ou Canadá. Raros quiseram retornar aos seus países de origem, principalmente para a Alemanha, Polônia, Áustria e Hungria. O trauma deixado pela violência nazista, pela guerra e pela ausência de solidariedade foi mais forte que o sentimento de pertencimento.

Durante décadas, esses refugiados viveram uma espécie de “exílio interior”, negando-se a buscar por suas raízes, atitude que hoje está sendo reavivada entre os seus descendentes, filhos e netos que até então “nada sabiam”.

Esses refugiados conseguiram ingressar no Brasil estabelecendo-se principalmente nos grandes centros urbanos. Distinguiam-se das levas anteriores da emigração europeia que, desde o final do século 19 até o início da década de 1920, trouxeram para o Brasil milhares de colonos direcionados para a zona rural por companhias de colonização.

Durante o período entreguerras este perfil começou a ser alterado devido ao alto índice de desemprego, miséria e fome, que abalavam os centros urbanos do Leste Europeu. A partir da ascensão do nazismo na Alemanha em 1933 e a proliferação do antissemitismo em vários países europeus, configurou-se um outro momento da Diáspora Judaica: a fuga em massa de judeus, muitos dos quais, apátridas. Eram  intelectuais, artistas, operários e técnicos qualificados que deixaram um importante legado cultural para os países que os acolheram.

Essas duas situações – dos sobreviventes do Holocausto e dos refugiados hoje – nos preocupam tendo em vista as lições do passado. São fenômenos que guardam suas singularidades considerando-se as diferenças entre os regimes totalitários e os processos de globalização/transnacionalização que interferem nos movimentos de massa deste século 21.

Dentre os artistas e escritores que buscaram refúgio no Brasil deixando um importante legado para a cultura brasileira citamos: Alice Brill, Axl Leskoschek, Felicja Blumental, Frans Krajcberg, Lászlo Zinner, Paula Ludwig, Stefan Zweig, Zbigniew Marian Ziembinski, Walter Levy, Anatol Rosenfeld, Ernest Feder, Frank Arnau, José Antonio Benton, Hermann Mathias Görgen, José Antonio Benton (Hans Elsas), Michael Traumann, Olly Reinheimer, Kurt Klagsbrunn, Heinz Joseph (Hejo), Hildegard Rosenthal, Fred Klimann, Hans Günter Flieg,  Ed Keffel, Curt Schulze, Willhelm (Willy)  Keller, Karl Lustig von Prean, Nídia Lícia Pincarle Cardoso e Wolf Harnisch.  Estas trajetórias estão sendo investigadas pela equipe dos projetos Travessias e Vozes do Holocausto, junto ao LEER- Universidade de São Paulo, disponível na Base de dados Arqshoah: www.arqshoah.com

O resgate desses vínculos com a  história e a memória extrapola os interesses pessoais para fazer  parte de um todo,  muito maior do que imaginamos e que ainda está para ser descoberto. O interesse por este resgate de raízes expressa momentos íntimos de vínculos definidores da autoconsciência e da solidariedade em relação ao drama do outro e dos seus próprios, equivalendo à “história de si”. São micro-histórias que detonam exercícios de sobrevivência do eu e que, até então, estavam retraídas, acobertadas pela nuvem cinza do esquecimento.

São oportunidades que surgem para lançar informações inéditas à história e memória das diásporas, que, neste século 21, recebe novos protagonistas. Daí a importância de registrarmos as histórias dos refugiados que, ainda hoje, não conseguem  lidar com o seu próprio destino. Ao mesmo tempo, constatamos a falta de consciência histórica das autoridades governamentais, preocupadas muito mais em livrar-se do “perigo/refugiado”, expulsá-lo de suas fronteiras,  do que com a oferta de ajuda humanitária imediata.

[1] SORJ, Bernardo. Diáspora, Judaísmo e Teoria Social, in: GRIN, M.; VIEIRA, N. H. (Orgs.). Experiência cultural judaica no Brasil 22.  Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, pp. 53-79.  Disponível em http://www.bernardosorj.com.br/pdf/diasporajudaismoeteoriasocial.pdf

 

[2] SAFRAN, W. “The Jewish Diaspora in a comparative and theoretical perspective”, in: Israel Studies 18. Bloomington, v. 10, n. 1, 2005, pp. 36-60.


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