A lição do Mestre

Fabio Cesar Alves é professor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH

 16/05/2017 - Publicado há 7 anos
Fabio Cesar Alves – Foto: Marcos Santos / USP Imagens
A morte de Antonio Candido tem provocado, justificadamente, reações muito comovidas. Tomado de consternação, e em um momento terrível da vida nacional, vejo professores, colegas e alunos meus também emocionados. Não perdemos apenas o maior crítico, o homem empenhado a pensar o País, o descobridor de novos escritores: perdemos também o autor do primeiro ensaio efetivamente dialético no âmbito da crítica literária brasileira, “Dialética da malandragem”, que revolucionou o modo de ler as Memórias de um sargento de milícias e, a partir dele, toda a literatura nacional. Roberto Schwarz, nosso outro mestre, demonstrou o quanto a “dialética da ordem e da desordem” o inspirou na leitura – também revolucionária e sem equivalentes  ̶  de Machado de Assis, na descoberta da passagem do “paternalismo esclarecido” dos primeiros livros à volubilidade do narrador da fase madura. Pois o que Candido inaugurou (ainda em 1970 e em um momento em que vigorava o marxismo vulgar, de um lado, e o estruturalismo, de outro) foi nada menos que um método de análise profundamente ancorado no conceito de forma. Interessava ao crítico entender como a matéria social se tornava elemento da composição literária. Recentemente, em uma tirada bem-humorada e genial (o que dá a medida do quanto o professor nonagenário sabia falar a jovens estudantes e leitores), ele retomou o conceito com as seguintes palavras: “O que interessa saber é como, na literatura, a carne de vaca vira croquete” [1].

Como o mundo intelectual é um campo de disputas simbólicas, até hoje há quem insista em rotular de “sociologia da literatura” o método desenvolvido por Candido; no entanto, bastaria uma leitura honesta, por exemplo, de Literatura e sociedade (seu único livro estritamente teórico) para dirimir a falácia: “Quando fazemos uma análise desse tipo”, diz o crítico, “podemos dizer que levamos em conta o elemento social não exteriormente, […] mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” [2]. Estamos longe, portanto, da concepção do texto literário como mero pretexto para o estudo de elementos externos a ele  ̶  está tudo ali dentro, diria um leitor mais atento aos seus passos.

Outra fonte de mal-entendidos é o célebre ensaio “O direito à literatura”, uma palestra de 1988 para a SBPC, no qual Candido define a literatura, entendida como a capacidade de fabular, como um direito essencial de todo indivíduo e de todos os povos, um fator indispensável de humanização, capaz de nos tornar mais compreensíveis e abertos. Não se trata de celebrar uma “identidade universal” em detrimento da “diversidade cultural do mundo”, mas de, no contexto de um Brasil recém-democratizado, reivindicar também para as classes subalternas o acesso (negado pela estrutura social iníqua) aos bens da cultura, criações que nos permitem entendermo-nos enquanto parte “dessa pátria tão despatriada”, para falar com o seu querido Mário de Andrade. Uma concepção, mais uma vez, profundamente democrática e radical.

Não perdemos apenas o maior crítico, o homem empenhado a pensar o País, o descobridor de novos escritores: perdemos também o autor do primeiro ensaio efetivamente dialético no âmbito da crítica literária brasileira, “Dialética da malandragem”, que revolucionou o modo de ler as Memórias de um sargento de milícias e, a partir dele, toda a literatura nacional.

Neste momento de guinada ultraconservadora no Brasil e no mundo, penso que a figura de Antonio Candido como um homem de esquerda não pode, e nem deve, ser neutralizada. A combatividade, a opção política clara e a ciência quanto ao caráter ineducável de nossas elites sempre foram muito evidentes em sua trajetória e, o que me parece fundamental, formam a base de sua reflexão teórica sobre a obra literária. Do ponto de vista biográfico, nunca é demais lembrar que Candido lutou contra o Estado Novo e participou do Congresso Brasileiro de Escritores; fundou o Partido Socialista Brasileiro, uma rara opção ao dogmatismo do PCB, ainda nos anos 1940; opôs-se à ditadura civil-militar, contribuindo para a criação do PT; mais recentemente, criticou ferozmente o golpe que depôs a presidenta eleita.

Tais posturas são indissociáveis de seu rigoroso método de análise, que, por meio de uma escrita sensível e delicada, rechaça o ponto de vista essencialista e atemporal, levando sempre em consideração as determinações históricas do texto, refratadas que estão em sua “estrutura íntima”: um mergulho, por assim dizer, no tempo e na vida em sociedade por meio da literatura, capaz de pôr a nu aquilo que, na realidade empírica, muitas vezes não se explicita. Ao contrário do que dizem os adeptos do amor universal, não se trata de limitar o foco, mas de ampliá-lo, convocando inclusive conhecimentos de diversas áreas, desde que esses atuem na estruturação interna do material.  Como se vê, a tarefa crítica não é simples, porque pressupõe intimidade com o objeto, conhecimento profundo do processo social e ainda um olhar atento a fim de se evitar “o canto de sereia” das teorias da moda.

Como modo de encerrar esses breves comentários, peço licença para um depoimento pessoal. Tive a honra, em minha trajetória acadêmica, de ter sido orientado por uma de suas mais brilhantes alunas, a professora Telê Ancona Lopez, e por Ivone Rabello, orientada por João Luiz Lafetá, que foi, por sua vez, orientando de Candido. O meu trabalho de pesquisa, ligado ao Arquivo Graciliano Ramos, levou-me, em julho de 2007, à casa do professor, para conversarmos sobre a obra do escritor alagoano. Em meio a um papo bastante informal, em que se misturavam temas como samba, guerra e literatura feminista (uma postura fluida e acolhedora, incomum até entre professores mais jovens), Candido relembrou o seu primeiro contato com o Velho Graça:

“Conheci Graciliano no Jardim Botânico, num jantar oferecido por Otávio Tarquínio de Sousa e sua senhora, dona Lúcia Miguel Pereira. Ele não abriu a boca. Ao final, fomos de bonde até Botafogo, saltamos eu e Gilda. Ele, que permaneceu no bonde, fez repetidamente um gesto com as mãos, como que nos saudando. Graciliano sempre foi conhecido por seu pessimismo radical. Numa tarde de outubro no Rio de Janeiro, daquelas tardes luminosas que te deixam feliz, de um lado vinha Otto Maria Carpeaux; de outro, Graciliano, com um imenso guarda-chuva. Só alguém muito pessimista mesmo para carregar guarda-chuva num dia desses”.

À parte o anedótico aqui transcrito, o que destaco dessa mesma conversa é algo que talvez nos sirva de alerta: a necessidade de, em momentos políticos duros, unirmo-nos contra a opressão instituída. Candido relembrou que, em meio às diversas correntes de esquerda dos anos 1940 – socialistas democráticos, trotskistas, comunistas ortodoxos  ̶ , havia a necessidade imperiosa de luta contra o inimigo comum:

“Naquele momento, em 1945, era preciso unir forças. É assim quando se tem uma ditadura: união. Quando vem a democracia, cada um até pode cuidar de seus interesses. Mas naquele momento, de luta contra o nazismo e contra o Estado Novo, isso era muito sério”.

Em meio ao atual desmanche de um país ao qual Antonio Candido, à semelhança de Mário de Andrade, devotou permanentemente sua reflexão, sua obra e sua vida, essa fala se torna ainda mais importante por advertir contra uma luta fratricida entre aqueles que partilham dos mesmos ideais (um dos dilemas mais traumáticos, e com enormes consequências, para as esquerdas ao longo de todo o século XX). Fica, ainda uma vez mais, a lição do mestre. E a esperança de que possamos fazer jus, minimamente, ao seu legado.

 

[1] Entrevista ao jornal Brasil de Fato, 8 de agosto de 2011.

[2] Em Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 7.


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