A educação: de Moriana a Ercília

Julio Groppa Aquino é professor titular da FEUSP

 18/04/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 20/04/2017 as 15:53

Julio Roberto Groppa Aquino – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

No grande livro de Italo Calvino, entre as 55 cidades invisíveis descritas por Marco Polo a Kublai Khan, umas podem ser reconhecidas por seus atributos imediatos: são delgadas, contínuas ou ocultas. Outras caracterizam-se pela relação que mantêm com certas faculdades do espírito: a memória, o desejo, os símbolos. Elas podem também ser definidas pela vinculação que estabelecem com as coisas: o céu, os nomes, os mortos.

Algumas distinguem-se, em específico, pelo efeito que provocam no olhar dos que ali chegam. Nestas cidades, a visão do forasteiro é ludibriada por arranjos ópticos artificiosos. As cores e formas exuberantes que se dão a ver de pronto nada mais são do que o resultado provisório do embate de dois campos de força que não cessam de se fustigar.

Moriana é uma delas. Recordêmo-la. “Vadeado o rio, transposto o vale, o viajante encontra-se, subitamente, diante da cidade de Moriana, com as portas de alabastro transparente à luz do sol, as colunas de coral que sustentam frontões incrustados de serpentina, as aldeias inteiramente de vidro como aquários em que nadam as sombras de dançarinas com adornos prateados sob os lampadários em forma de medusa. Se não é a sua primeira viagem, o viajante já sabe que cidades como esta têm um avesso: basta percorrer um semicírculo e ver-se-á a face obscura de Moriana, uma ampla lâmina enferrujada, pedaços de pano, eixos hirtos de pregos, tubos negros de fuligem, montes de potes de vidro, muros escuros com escritas desbotadas, caixilhos de cadeiras despalhadas, cordas que servem apenas para se enforcar numa trave podre” (CALVINO, 1990, p. 97).

Se atribuirmos crédito não apenas literário, mas também filosófico à narrativa de Marco Polo – e não há interdição epistêmica de nenhuma ordem que nos impedisse de fazê-lo –, deduziremos sem esforço que todas as práticas são comumente marcadas por correlações de contraste. Assim, a cidade de duas faces imaginada por Italo Calvino bem pode ser tomada como um leitmotiv do pensamento, quando este decide se ocupar do difícil encontro da educação com a atualidade histórica.

Evocar a ideia geral de educação pressupõe perspectivá-la obrigatoriamente para além da forma escolar, esta, aliás, tida como o âmbito de sua maior vulnerabilidade. Isso porque o que antes era atribuído primordialmente ao domínio escolar agora passa a ser materializado por um sem-número de intervenções não formais, espalhadas por todo o tecido social (com destaque, claro está, para o universo virtual), às quais estaria reservada uma resolutividade pedagógica decididamente maior do que as ações escolares típicas, como se costuma apregoar.

Se não é a sua primeira viagem, o viajante já sabe que cidades como esta têm um avesso: basta percorrer um semicírculo e ver-se-á a face obscura de Moriana, uma ampla lâmina enferrujada, pedaços de pano, eixos hirtos de pregos, tubos negros de fuligem, montes de potes de vidro…”

Assim é que determinados campos da experiência cotidiana que antes se postavam ao lado ou mesmo fora do escopo formativo, convertem-se em objetos privilegiados de investidas pedagogizantes. E a educabilidade dos cidadãos, traduzida em termos de uma demanda de aquisição de informações difusas, passa a ser tomada como condição sine qua non para a subsistência em um mundo reputado como instável, concorrencial etc.

A reboque do imperativo categórico da “sociedade do conhecimento” ou, mais especificamente, da “sociedade da aprendizagem”, o axioma “aprender a aprender” converte-se em uma lida interminável e, afinal, sufocante, a fomentar a onipresença de um personagem social heterodoxo: o homo pedagogicus – tal como o designam os pesquisadores sul-africanos  Roger Deacon e Ben Parker. A irrupção de tal personagem consiste em um fato inédito na história, coetâneo da circulação de informações sem controle e, a rigor, sem valor intrínseco, firmando-se como princípio incondicionado dos modos de ser e de conviver na atualidade.

Do ponto de vista educacional, a questão que se nos coloca, hoje, remete ao paradoxo incontornável de que, quanto mais informações os cidadãos demandam e obtêm, mais o mundo parece se apequenar, uma vez que seus acontecimentos acabam invariavelmente sendo tragados por manifestações antagônicas e irredutíveis: os signatários versus os adversários seja de um partido político, de um estilo de vida, às vezes de uma mera expressão desavisada.

O projeto de educar a todos a fim de lhes assegurar o exercício da autonomia teria se reduzido a um front opinativo, então? Seria essa a contraparte deletéria da educacionalização social?

Se sim, só nos resta uma atitude módica mediante a tagarelice que assola nosso presente: deixar passar, fazendo-lhe ouvidos moucos. Quem sabe assim, o ensino escolar ganhe um novo impulso e, com isso, outro lugar social; um ponto de distanciamento e, sobretudo, de algum silêncio neste, ainda, vasto mundo.

Conta Marco Polo que em Ercília, outra cidade anexada ao império de Kublai Khan, seus habitantes estendem fios em diferentes tonalidades mescladas de preto e branco entre as casas, de modo a informar as relações de parentesco, autoridade etc. Quando o emaranhado de fios não mais permite que se atravesse a cidade, os habitantes então a abandonam; as casas são desmontadas, restando apenas “teias de aranha de relações intrincadas à procura de uma forma” (CALVINO, 1990, p.72). De longe, eles olham para o enredo de fios e concluem que eles nada significam. Então, “reconstroem Ercília em outro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante, mas gostariam que fosse mais complicada e ao mesmo tempo mais regular do que a outra. Depois a abandonam e transferem-se juntamente com as casas para ainda mais longe” (CALVINO, 1990, p. 72).


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