A árvore do desconhecimento – uma fábula

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 24/07/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 15/03/2018 as 14:56

Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

No princípio Deus criou as letras e os números. Não satisfeito, no segundo dia criou as palavras e as contas, não aquelas que chegam no fim do mês, pelo correio, mas as de somar e multiplicar, coisa simples ainda. No terceiro dia, Deus criou os verbos, os pronomes e, claro, a regra de três. No quarto dia surgiram as frases e as equações, as sentenças e os números primos. Foi só no quinto dia que Deus se lembrou do palavrão, do Pi e da taxa de juros. Já estava quase tudo pronto.

No sexto dia da criação Deus pensou: que adianta tudo isso se não tenho como usar, como mostrar para os outros? Então, à sua imagem e semelhança, Deus criou o Lápis. E no sábado foi descansar.

O Lápis era a pura perfeição, forjado na grafite do mais nobre carbono (o mesmo do diamante) e embalado na madeira do melhor cipreste. Apesar disso tudo, no entanto, o Lápis sentiu-se só. Então, para fazer-lhe companhia, Deus criou a Folha de Papel.

Eles viviam felizes no paraíso, Lápis e Folha, rabiscando obscenidades e calculando, no maior entusiasmo, a fatoração de polinômios. O toque do Lápis sobre a Folha de Papel era tão suave e amoroso que às vezes ela, a Folha, achava que não podia haver no mundo nada melhor do que aquilo. Engano seu.

Desde sempre tinham sido avisados de que jamais poderiam chegar perto de uma grande árvore bem no meio do Jardim do Éden. A Folha, não resistindo à vontade de sentir em si o líquido branco que escorria feito leite do tronco da árvore, desobedeceu à divina lei, e assim que foi tocada pelo leite tudo o que estava gravado na celulose de seu corpo começou a sumir.

Sem saber, ela havia sido ludibriada pelo mais astuto ser do Jardim do Éden – a borracha. Então, todos os adoráveis xingamentos e impropérios, todas as doces e sensuais equações cúbicas foram se desvanecendo e no seu lugar surgiu uma palavra que o Lápis, na sua cilíndrica pureza, nunca havia usado antes, muito menos daquela maneira tão áspera e grosseira: VERGONHA. E os dois foram expulsos do paraíso, levando na bagagem a tinhosa apaga-letras.

No princípio Deus criou as letras e os números. Não satisfeito, no segundo dia criou as palavras e as contas, não aquelas que chegam no fim do mês, pelo correio, mas as de somar e multiplicar, coisa simples ainda. No terceiro dia, Deus criou os verbos, os pronomes e, claro, a regra de três”

Mal tinham enfrentado a primeira restrição, com ela vieram também a ortografia, a sintaxe e o adjunto adnominal. Logo conheceriam a divisão e o sinal de menos e, em seguida, o zero. Primeiro acharam que fosse um “O” achatado, mas quando perceberam que se tratava mesmo de um número, pela primeira vez o Lápis desenhou a palavra MEDO.

E foram dar numa terra estranha, completamente diferente de tudo que conheciam. Um lugar esquecido por Deus, onde um mundaréu de canetas exibia, na transparência de seus invólucros, a nudez colorida de suas tintas. Um local de malícia e imoralidade em que todos tinham nomes diferentes – Parker, Montblanc, Bic, Crown – e se dividiam em castas estabelecidas pela qualidade do material e a indicação de procedência.

Era um povo arrogante e sofisticado, sempre se exibindo no bolso da camisa de grife de um empresário bem-sucedido ou de um político proselitista, e mesmo a mais reles esferográfica também conseguia ser exposta na orelha de algum português de padaria.

Lápis e Folha prenderam a respiração ao saber que ali se adoravam vários deuses, umas engrenagens barulhentas e monstruosas, as quais, como as canetas, também possuíam nomes diversos: Olivetti, Remington, Underwood e a poderosa Olympia. Impiedosos e cruéis, esses deuses-máquinas exigiam diariamente o sacrifício de virgens folhas de papel em cujo alvíssimo corpo eram dolorosamente impressas palavras e frases sem sentido, que às vezes eram corrigidas por canetas sacerdotisas, que assim, em orgiástica idolatria pagã, misturavam sua própria tinta à tinta de seus deuses.

O Lápis, petrificado diante de tamanha barbárie, já ia mandando um palavrão daqueles, mas tão logo pressentiu a proximidade sorrateira da borracha tracejou a palavra HORROR e correu para um canto da cidade, onde presenciaria algo ainda mais assombroso, algo que o minério de suas entranhas não seria capaz de descrever.

Viu centenas de outros lápis como ele sendo escravizados, forçados a rascunhar dia e noite aquilo que, depois, os deuses-máquinas gravariam na anca das pobres folhas virgens. E isso o revoltou. Mais ainda quando se deparou com uma legião de estropiados caminhando a esmo pelas ruas. Alguns eram meros tocos do que outrora havia sido um lápis. Outros, lascados e deformados, expunham pedaços enormes de suas pontas desfiguradas.

Mal tinham enfrentado a primeira restrição, com ela vieram também a ortografia, a sintaxe e o adjunto adnominal. Logo conheceriam a divisão e o sinal de menos e, em seguida, o zero. Primeiro acharam que fosse um “O” achatado, mas quando perceberam que se tratava mesmo de um número, pela primeira vez o Lápis desenhou a palavra MEDO”

Lápis e Folha souberam que essas mutilações se deviam à sanha de terríveis mecanismos de tortura chamados de apontadores, os quais, ao lado dos ainda mais abomináveis estiletes e facões, esfolavam de modo inclemente a casca dos pobres infelizes, obrigando-os a rascunhar até o último fio de grafite.

Por toda parte viram lápis cuja fé havia sido vilipendiada e a esperança, perdida; e outros que se prostituíam na vã tentativa de se parecer com canetas. Eram lápis de cor e indecentes lapiseiras plásticas seminuas com borrachas acopladas à cabeça. Naquele momento, o Lápis também teve sua fé abalada e duvidou de seu Deus, e num pequeno espaço em branco que ainda restava na Folha de Papel inscreveu a mais cabeluda blasfêmia que pode conceber, sem se importar com a ardilosa borracha sempre à espreita de um deslize.

E fez-se um barulho incrível no céu, e Deus apareceu. E Deus era um computador cheio de luzinhas piscando ao som de uma balada romântica do ABBA. “Quem é você?”, perguntou o Lápis. E na tela de cristal líquido, Deus digitou em alto e bom toque: “EU SOU O QUE É”. O Lápis, desviando-se da luz muito forte, que o cegava, retrucou: “Mas eu é que não sou o que é você. Ou sou o que você não é? Enfim, nem gosto desse tipo de música”. “Perfeito!”, retumbou Deus. “Foi por isso que te dei o livre-arbítrio, a capacidade de ser o que quiseres, de criares qualquer coisa, desde um belo romance do Sidney Sheldon até uma melodia inspirada do Julio Iglesias. Tudo depende de ti e da persistência em acreditares em ti mesmo.”

O Lápis pensou que aquele Deus tinha um mau gosto desgraçado e que, ainda por cima, aquilo estava começando a parecer conversa de autoajuda; e por um momento suspeitou de que por trás daquele teclado se ocultasse o Lair Ribeiro.

Mas retomou o fio do raciocínio: “Ainda assim não tenho nada a ver com você. O que eu faço não deixa rastros e pode ser apagado facilmente. Por isso só sirvo para rascunho”. E Deus, eliminando a última frase exposta na tela, fez ver ao Lápis que nele tudo se apagava também. “O que em ti é borracha, em mim é a tecla ‘delete’. Portanto, tal como em ti, também não ficam vestígios do que em mim é alterado, pois os dois somos feitos da mesma matéria dos sonhos.”

“Peraí, eu não entendi o porquê desse final, mas gostei!”, disse o Lápis. “É Shakespeare, né?” E Deus, na sua ira, fez bradar ainda mais alto o som do kit multimídia: “Cala-te, ó ímpio cilindro, ou te mando agrilhoar nas alturas do Cáucaso, onde teu fígado mineral será eternamente perfurado por uma ave de rapina!”.

O Lápis até percebeu que Deus estava confundindo as mitologias, mas achou melhor ficar quieto. E para tirar a limpo aquela confusão toda, mesmo que um tanto cabreiro com seu Criador, quis fazer uma última pergunta, aquela que definiria para sempre os rumos de sua fé, e essa pergunta, de tão complexa, ele teve de formular em linguagem sagrada de computador, mais ou menos assim expressa: “//self::$link=mysql_connect1<null}?”.

E no instante em que Deus, senhor de toda verdade alfanumérica do universo, ia responder; naquele instante de suprema sabedoria, quando as coisas se tornam claras como num flash; naquele momento, por assim dizer, de iluminação, talvez por falta de pagamento ou tilt – vai saber –, desfez-se a luz e o monitor desligou. Escurecendo em trevas.


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